Se procurar, na rede social TikTok, vídeos sobre o tema “ingerir café com o estômago vazio”, vai encontrar várias publicações de utilizadores que tentam demover os outros de ingerirem café em jejum, logo de manhã, com o risco de provocar, por exemplo, ansiedade, cansaço extremo, perda de cabelo, acne, períodos com muitas cólicas e até problemas intestinais.
A justificação de vários utilizadores é a de que o café, ingerido com o estômago vazio, aumenta e desregula os níveis de cortisol, hormona produzida pelas glândulas suprrarenais que ajuda a controlar o stress – é conhecida por “hormona do stress”, já que atinge o seu pico quando estamos stressados ou com medo -, a reduzir inflamações e auxilia no funcionamento do sistema imunitário e regulação do metabolismo e pressão arterial.
A ideia de que ingerir café de manhã é prejudicial ao organismo não é recente: em 2015, a VISÃO escrevia que “ingerir cafeína pouco depois de acordar pode ser contraproducente”, já que “não só afeta o efeito da própria cafeína, como leva a uma tolerância à substância”.
O cortisol é fundamental para o ritmo circadiano, o “relógio” do organismo, que ajuda a acordar de manhã e a adormecer à noite. “Ajuda a controlar o ciclo sono-vigília, aumentando naturalmente no início da manhã e fazendo com que entre no período de vigília. Sem esse aumento matinal, não seríamos capaz de funcionar durante o dia”, explica, ao site BuzzFeed, o médico e investigador britânico Idrees Mughal.
Os níveis mais elevados de cortisol são registados precisamente ao acordar e, por isso, o consumo de cafeína nesta altura já foi associado a problemas a dois níveis. Em primeiro lugar, por interferir na produção de cortisol: o corpo produz menos e “confia” mais na cafeína; Em segundo lugar, porque leva a uma tolerância a longo prazo à cafeína, fazendo com que vá substituindo o impulso natural de energia que o corpo costumava ir buscar ao cortisol, em vez de o complementar.
Um estudo realizado em 2009 deu conta de que os níveis de cortisol têm três picos ao longo do dia: no início da manhã, entre as 6h00 e as 10h (e particularmente entre as 8h00 e as 9h00), perto do meio-dia e no final da tarde. Por isso, descreveu que a melhor altura para beber café é entre esses picos, ou seja, entre as 10h00 e as 12h00 e entre as 14h00 e as 17h00.
O farmacêutico Parvinder Sagoo acredita que, em vez de ingerirmos cafeína logo em jejum, devemos beber água, já que, quando acordamos, o corpo está desidratado, e como a cafeína é um diurético, isto é, contribui para aumentar as idas à casa de banho, devemos beber água para não desidratarmos mais, afirma, em declarações à revista Glamour. À mesma revista, a nutricionista Nataly Komova refere que os níveis elevados de cortisol “podem aumentar o açúcar no sangue, o que causa resistência à insulina e drena a energia à medida que o corpo trabalha mais para manter níveis moderados de glicose”.
Afinal, devemos ou não beber café em jejum?
A ciência mostra-nos que o consumo de café pode refletir-se em vários benefícios para a saúde, “quando integrado numa dieta saudável”, diz à VISÃO João Sérgio Neves, endocrionologista no Hospital Lusíadas Porto. A maioria dos estudos que avaliaram os efeitos do consumo do café e cafeína dizem que o consumo até três a cinco chávenas por dia está associado a uma redução de múltiplas doenças crónicas, como as cardiovasculares, diabetes, doenças hepáticas ou até neurodegenerativas.
Uma extensa revisão de estudos de 2017, por exemplo, revelou precisamente que o seu consumo reduz o risco de morte e várias doenças crónicas, incluindo cardíacas e hepáticas, além dos sintomas provocados por dores de cabeça.
Além disso, é conhecido por melhorar a perfomance durante o exercício físico – um estudo publicado no International Journal of Sport Nutrition and Exercise Metabolism comprova-o – e por ser benéfico também para o cérebro: estudos demonstraram que o seu consumo ajuda a prevenir a doença de Alzheimer e consegue até desenvolver melhorias dos sintomas de doentes com Parkinson.
O café também é rico em propriedades antioxidantes, especialmente num grupo de compostos denominados polifenóis, que funcionam como anti-inflamatórios. “Quando falamos de café, estamos a falar não só de cafeína mas também de várias substâncias com efeitos antioxidantes, como os vários polifenóis que fazem parte do café”, confirma Neves.
Hormonalmente, o endocrinologista explica que o consumo regular de café melhora a sensibilidade do organismo à insulina, o que pode levar a uma melhoria do metabolismo glicémico e à redução do risco de diabetes a longo prazo. “Estes efeitos parecem depender mais dos restantes componentes do café do que da própria cafeína”, esclarece.
Existe ainda um efeito hormonal muito claro da cafeína, diz o médico: inibe a produção da hormona antidiurética, produzida no hipotálamo, a nível do sistema nervoso central, e esta hormona reduz a eliminação de água a nível renal. “O que acontece é que o consumo de café, ou qualquer outro produto que contenha cafeína, vai levar a um efeito diurético, o que por si só não é necessariamente prejudicial, mas se não for compensado com uma maior ingestão de água, pode levar a desidratação”.
As alegações encontradas nos vídeos do TikTok são de que o café pode ser negativo para a saúde se for ingerido de estômago vazio, porque aumenta os níveis de cortisol. Neves refere que a cafeína leva a um grande aumento da produção de cortisol, assim como estimula a libertação de um conjunto de hormonas chamadas catecolaminas, onde se engloba a adrenalina. “Tanto as catecolaminas como o cortisol podem levar a um aumento da pressão arterial, da ansiedade ou provocar insónias”, explica o médico, acrescentando que estes efeitos não parecem ser muito relevantes em pessoas que já consomem café com regularidade. “Observa-se um efeito de habituação do organismo”, esclarece ainda.
Todos estes efeitos do café e até da própria cafeína parecem ser muito similiares quando o café é ingerido em jejum ou após a refeição, refere o especialista, por isso, de uma perspetiva global, os benefícios do café, principalmente se for consumido em moderação, podem ser observados em jejum ou não. “Salientaria apenas que, sabendo que o café estimula a produção de ácido a nível gástrico, e este aumento da acidez pode ser prejudicial para pessoas que têm histórias de doenças relacionadas com hiperacidez gástrica”.
José Pedro Rodrigues, gastroenterologista no Hospital Lusíadas, em Lisboa, explica à VISÃO que beber café em jejum “pode agravar os sintomas de refluxo gastroesofágico – nomeadamente um ardor atrás do peito -” em pessoas que já tenham antecedentes de doença de refluxo gastro-esofágico. “Para quem não tem esse problema, não existe evidência de que o consumo de café seja um problema”, garante.
Neves refere ainda que o período em que a acidez gástrica tem um efeito mais claro sobre o próprio estômago, esófago e até sobre o duodeno é precisamente quando ficamos muitas horas sem comer, já que a acidez não se liga aos alimentos que acabam por diminuir o efeito da acidez sobre a própria parede do trato gastrointestinal.