“O álcool esteve presente no meu dia a dia desde os 18 anos. Sempre foi algo normal”, começa por contar Vítor (nome fictício), oriundo de uma família “humilde e modesta”. A relação com o álcool foi aumentando, gradualmente e à medida da sua resistência e tolerância, até aos 40 anos. “Aguentava bem a bebida e, mais tarde, consegui perceber que poderia ter evitado o risco, mas o álcool é manhoso, está socialmente integrado, e a compulsão acaba por ser devastadora.”
Progressivamente, o alcoolismo foi-se instalando e pondo em causa o casamento, a relação com o filho e os empregos que ia tendo, um deles na Marinha. Na primeira vez que tentou ficar abstinente, fê-lo em resposta à mulher, que o ameaçou com o divórcio. “Na minha arrogância, tinha aquela ideia distorcida de que, deixando de beber, era ela quem ficava exposta, porque deixaria de ter razões para querer a separação. Eu ganhava bem, levava 160 contos para casa, e o álcool não era um problema”, conta.
Procurou ajuda no Centro Regional de Alcoologia do Sul, atual Unidade de Alcoologia de Lisboa, depois de um episódio que funcionou como um grande alerta. “Um dia, disse a um colega que ia ao café. Sentei-me por volta das 10 da manhã para beber uma imperial e fiquei colado ao balcão. Bebi mais uma e mais outra. Os meus colegas começavam a chegar para almoçar e eu continuava ali.” Foi visto por um médico, começou a tomar medicação e deixou de beber. Não contou nada em casa e assume que mantinha a arrogância de que agora é que ninguém lhe poderia apontar o dedo. “O médico dizia-me que eu era a negação com pernas.” Esteve dois anos sem beber até ter uma recaída.
Qual a taxa ideal de álcool no sangue?
Há mais de duas décadas que o gastrenterologista e hepatologista Rui Tato Marinho analisa a relação entre o alcoolismo e os acidentes na estrada, defendendo um limite de taxa de álcool no sangue de 0,2 mg/ml para os condutores, ou mesmo 0,0 mg/ml. “De 0,2 mg/ml para 0,5 mg/ml, o risco de acidentes mortais aumenta para o dobro, na população em geral, e 700% nalguns grupos de jovens (sexo masculino dos 16-20 anos)”, conclui, garantindo que este estudo se mantém atual. Nos países em que foi estabelecido um limite de taxa de álcool de 0,2 mg/ml, de forma geral ou restrita, em alguns grupos da população, “assistiu-se à redução da sinistralidade e da mortalidade rodoviária de forma significativa”. Um morto na estrada “é uma catástrofe e, em média, perdem-se cerca de 40 anos de vida”, alerta Rui Tato Marinho.
Tudo à sua volta desmoronou: o casamento acabou, perdeu o emprego, ficou sem dinheiro e foi passar uma temporada com o irmão, aos EUA. “Fazia algumas paragens no consumo, passava um mês a beber sumos de laranja até ‘atinar’. Já de volta a Portugal, respondia a um anúncio, ia trabalhar, estava bem durante seis meses, recaía novamente e voltava a perder o emprego.” Era um círculo vicioso até chegar ao ponto em que tinha dinheiro para “uns copos”, mas ele não chegava para comer ou pagar a renda. “Numa altura em que devia ajudar os meus velhotes, acabava por lhes bater à porta porque não tinha onde ficar.”
Já sentia tremores nas mãos, mal conseguia agarrar no copo, mas continuava a beber. Tinha sido também alertado para o facto de ter o fígado gordo e em sofrimento, mas nada o fazia recuar. “Defendia-me sempre com a falsa ideia de que o fígado regenera. A doença dá-nos habilidade para justificar a compulsão”, partilha. Acabou por seguir a sugestão da mãe e foi internado no CRAS, durante um mês, e esteve oito anos em recuperação, com a ajuda de consultas de psicologia e de participação em reuniões nos Alcoólicos Anónimos.
Um problema de saúde pública
“O álcool é responsável por várias alterações no fígado e é um grave problema de saúde pública em Portugal”, alerta Rui Tato Marinho, diretor do serviço de Gastrenterologia e de Hepatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e coordenador do Programa Prioritário das Hepatites Virais da Direção-Geral da Saúde (DGS). Estima-se que morrem, em Portugal, 2 500 pessoas por ano devido a doenças no fígado (cirrose e cancro) e, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o nosso país é o décimo do mundo com maior consumo de álcool.
Dados do Plano Nacional de Saúde da DGS (2021-2030), que comparam as principais causas de morte e a percentagem de variação da taxa de mortalidade padronizada pela idade superior a 75 anos em Portugal, confirmam que as doenças crónicas do fígado constituem “a quarta causa de morte precoce”. Apesar dos dados, o fígado continua a ser um órgão muito desconhecido pela população, ainda que os números sejam preocupantes. “No nosso país, cerca de 70% das doenças do fígado devem-se ao álcool.”
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Por ser de evolução lenta, a cirrose é a fase mais avançada da doença hepática alcoólica e um estado de maior desorganização e destruição do fígado. “Começa pela morte de células, inflamação, evolui para fibrose [cicatrizes] até chegar à fase em que surgem uns nódulos [caroços] que estão na base da cirrose. Esta pode definir-se como o meio caminho entre a inflamação e o cancro do fígado”, explica Rui Tato Marinho.
O diagnóstico pode ser tardio, porque há sinais muito inespecíficos. É uma verdadeira epidemia silenciosa, defende o médico. “Ou a pessoa faz umas análises ao sangue, e/ou uma ecografia abdominal, e descobre a doença por acaso ou, então, desenvolve sintomas em fases já muito avançadas”, frequentemente de forma irrecuperável, alerta.
Para uma identificação precoce da doença hepática alcoólica, o gastrenterologista defende a inclusão da ALT (alanina aminotransferase) nas análises de rotina, da mesma forma que acontece com o colesterol e o hemograma. “Felizmente, já há muitos médicos que prescrevem esta análise.” Recomenda-se ainda, pelo menos uma vez na vida, a realização dos testes das hepatites C e B.
A par das doenças do fígado, o álcool aumenta o risco de se vir a desenvolver cancros no aparelho digestivo, tumores malignos na laringe, alterações neurológicas, depressão, esquizofrenia, violência familiar, suicídio, homicídios ou acidentes de viação mortais. “A medicação principal é deixar de beber, mas o álcool é uma adição brutal e, em grande parte dos casos, os doentes não aderem à abstinência.”
Por outro lado, Rui Tato Marinho considera que o discurso deve passar a ser o de “redução de riscos”, uma vez que “a ideia de tolerância zero é irreal”. “O álcool é benigno e maligno ao mesmo tempo, tudo depende da quantidade que se ingere. Numa cirrose alcoólica, o mal já está feito. O doente tem de fazer uma ecografia, de seis em seis meses, para que um possível cancro no fígado seja identificado precocemente”, adverte. O risco de cancro é muito elevado, de 10% a 40% ao fim de 10 anos. “Continuar a beber agrava muito a cirrose e encurta a vida… Só se vive uma vez”, sublinha o hepatologista.
Fígado e cabeça
Patrícia António, psicóloga clínica e coordenadora na área de Redução de Riscos e Minimização de Danos da Unidade de Alcoologia de Lisboa (UAL), considera que é importante trabalhar com os doentes desde o início, indicando que a recaída vai fazer parte do processo de recuperação. “Se isso acontecer, somos as primeiras pessoas com quem eles devem falar. Não vamos estigmatizar, culpabilizar, mas entender a recaída como uma fonte de informação. Recaiu, ok, então vamos trabalhar de ‘mão dada’.”
Sendo esta uma doença sistémica, a abordagem multidisciplinar é essencial. Assim, o papel da psiquiatria e da psicologia pode fazer a diferença na minimização de riscos, antes de uma esperada e total abstinência. A UAL recebe pacientes reencaminhados de hospitais, de unidades de transplante ou referenciados pelo Ministério da Justiça. “Também há aqueles que nos procuram devido ao risco de divórcio e à pressão familiar, ou ainda os que são identificados pelas nossas equipas de rua que conseguiram motivá-los a procurar ajuda.”
Nos primeiros seis meses, a intervenção médica e psicológica acontece em conjunto e com o intuito de parar e de estabilizar consumos, porque “é nesta fase que há uma maior possibilidade de recaída”. Num caminho linear em ambulatório clássico, em que a pessoa está motivada e encontra um espaço seguro para enfrentar a sua relação com álcool, tratar-se e reorganizar-se pode exigir o seguimento regular durante dois anos, no mínimo.
Passada a barreira semestral e havendo uma perceção dos benefícios associados à abstinência, “há maior possibilidade de o doente ser abordado do ponto de vista psicológico com maior profundidade”. É a psicoterapia que vai ajudar o paciente “a tomar consciência do seu problema, das consequências e dos benefícios que pode obter se reduzir ou suprimir totalmente o consumo”, explica Graça Vilar, assistente graduada de psiquiatria e diretora do Planeamento e Intervenção do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).
Vítor percebeu-o numa segunda recaída, mais violenta. “A maneira como voltei a beber depois foi mais agressiva. De repente, ia ao supermercado logo cedo e, duas horas depois, já tinha despejado duas garrafas de vinho. Copo cheio, copo vazio; copo cheio, copo vazio”, descreve. Hoje reconhece as vezes em que o álcool adormecia a sua dor e as suas emoções. “Não tinha empatia, não sentia nada”, comenta. Viu na psicoterapia um “tratamento da alma” e uma forma de começar a tentar corrigir comportamentos, pensamentos e formas de estar.
Uma bebida por dia?
A abordagem terapêutica de um doente com perturbação do uso de álcool e com doença hepática em nada difere daquela que é realizada em pessoas sem esta condição, explica Graça Vilar. A única exceção diz respeito à “necessidade de uma maior valorização individual no caso do recurso a psicofármacos com metabolização hepática, os quais, consequentemente, podem contribuir para o agravamento da função hepática. Se a desintoxicação for imperiosa, deve-se, igualmente, ter em conta a doença hepática alcoólica e a coexistência de outras comorbilidades”.
É essencial envolver os familiares que, muitas vezes, sofrem em silêncio. “O alcoolismo é vivenciado, dezenas de anos, à porta fechada, numa família”, explica Patrícia António. Por vezes, é difícil desconstruir uma mensagem que se instalou, e esse trabalho cabe aos psicoterapeutas. “É que a doença não está no fígado, está no cérebro.”
A psicóloga clínica exemplifica algumas situações que servem de aviso: “Se a pessoa percebe que bebe mais do que anteriormente, já não se sente bem e considera que o consumo está a interferir nas suas rotinas, tem um problema associado ao álcool.” Quando não é a própria a pedir ajuda, por vezes é o meio externo – família, Justiça, colegas de trabalho.
Face à complexidade desta problemática, deve estar garantida a acessibilidade aos serviços especializados em comportamentos aditivos e dependências. “E deve também ser proporcionada ao doente uma diversidade de recursos terapêuticos, integrados e articulados em momentos simultâneos ou sucessivos, de acordo com o seu diagnóstico, as suas necessidades e as suas capacidades para se envolver num determinado projeto terapêutico”, refere Graça Vilar.
Há uma média de acordo com a qual se considera que o consumo de álcool é tóxico. Rui Tato Marinho sublinha que o que se defende atualmente é que, “a partir de uma bebida por dia, de forma continuada e ao longo dos anos, o risco de complicações aumenta”. Este depende ainda da história clínica e da quantidade de álcool que se bebe diariamente. “Se não se beber em alguns dias da semana, tanto melhor.” Por outro lado, a precocidade dos consumos leva à precocidade da doença. “Chegamos a receber pessoas com 30 anos e já com cirrose”, alerta Patrícia António.
Além do tratamento farmacológico e não farmacológico, importa apostar na “reinserção sociofamiliar, laboral e na motivação para a adoção de um ‘novo estilo de vida’, assente numa futura abstinência alcoólica total”, defende Graça Vilar.
Vítor, hoje com 60 anos, está há quase uma década sem beber. “Esta é uma doença sistémica que afeta os colegas de trabalho, a família, os vizinhos. O aumento da sinistralidade, da violência doméstica, da criminalidade: tudo isto está relacionado com o álcool”, afirma.
Também ele tem tentado ajudar os outros. Mudou de trabalho, curou-se da hepatite C, apostou numa nova relação. “Mudei de casa, ganho pouco mais do que o ordenado mínimo, mas sinto-me feliz. Recuperei bem também ao nível físico e, hoje, posso afirmar que tenho a minha vida organizada”, remata.
Como saber se já passou o risco?
A psiquiatra Graça Vilar explica quais os sinais de que o limite está a ser ultrapassado, ainda que “as suscetibilidades individuais face ao consumo de álcool sejam muito variadas”
►“Aguenta” cada vez mais o álcool, isto é, bebe maiores quantidades sem que se note aparentemente os efeitos da embriaguez. Isto acontece porque vai criando tolerância.
►Reduz o consumo ou deixa de beber bruscamente e sente um mal-estar físico e psíquico, correspondendo a sintomas de abstinência (tremor nas mãos, náuseas ou vómitos, irritabilidade, ansiedade), que se atenuam ou desaparecem se voltar a beber bebidas alcoólicas.
►Em algumas ocasiões, esforça-se por diminuir ou controlar o uso de álcool, inclusive tenta deixar de beber por si mesmo, mas não consegue.
►Verifica alterações importantes nas atividades sociais, recreativas ou ocupacionais. Tanto em casa como no trabalho, torna-se difícil cumprir com as obrigações e passam a ser frequentes conflitos nas relações interpessoais.
►Tem uma necessidade ou forte desejo incessante de beber, a despeito de todas as consequências negativas da alcoolização.
►Consome em situações em que é fisicamente perigoso, como quando tem de conduzir ou manejar máquinas, quando padece de alguma doença que pode agravar-se com o álcool (doenças do fígado, do estômago, depressão, ansiedade) ou quando está grávida ou a amamentar.
► É frequente negar ou desvalorizar a dependência, minimizando o consumo de álcool.
A pandemia agravou o alcoolismo?
Na fase inicial do contexto em que vivemos, quando se verificou em Portugal uma tendência geral para o confinamento, o SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) procurou estudar o impacto da pandemia nos consumos de álcool, e os resultados não são lineares.
No período em que muitos passaram a trabalhar a partir de casa, “foram mais aqueles que diminuíram o consumo de bebidas alcoólicas do que os que o aumentaram: 42% passaram a beber menos, 37% mantiveram o mesmo nível de consumo e 21% passaram a beber mais”, refere Graça Vilar.
Os que mais diminuíram os consumos de bebidas alcoólicas foram os mais jovens (18 aos 24 anos) e os estudantes. De entre os que mais aumentaram o consumo, destacam-se “os indivíduos do sexo masculino, com idades entre os 25 e 44, com mais qualificações académicas, com trabalho exclusivamente em casa, referindo que tinham mais stresse relacionado com a pandemia, maiores preocupações com os efeitos económicos”. Esse aumento também se deu “quem já tinha consumos de álcool numa base semanal ou quase diária e em quem já tinha tido ou ainda mantinha problemas ligados ao consumo”, acrescenta a psiquiatra.
As principais razões apontadas para o aumento do consumo foram atribuídas a mais tempo livre de obrigações e responsabilidades (40%), ao facto de o álcool ser facilitador de estados de humor e de relaxamento (37%) ou de animação (22%).