A região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) vai na linha da frente de uma corrida que ninguém quer ganhar. No domingo, 23 de maio, já tinha atingido uma incidência a 14 dias de 135 casos de Covid-19 por 100 mil habitantes e, segundo Carlos Antunes, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pode chegar a 153 casos por 100 mil habitantes, nos próximos três ou quatro dias.
“E continua a subir a um ritmo de 4,2%”, alerta o especialista alarmado com o ritmo de propagação da epidemia na zona da capital. Se não alarmados, atentos, pelo menos, deveriam estar também os lisboetas. É que tanto Carlos Antunes como o epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Manuel Carmo Gomes estimam que, se nada for feito, com a incidência atual e o índice de transmissibilidade (Rt) da região, (estimado em 1,18 pelo INSA), em menos de 15 dias o concelho de Lisboa chegará aos 240 casos por 100 mil habitantes.
Caso essa barreira seja mantida ou ultrapassada, durante duas semanas consecutivas, o Governo pode aplicar medidas restritivas, que é como quem diz, obrigar o concelho a andar para trás no tão desejado desconfinamento.
Apesar de o aumento da incidência entre as faixas mais jovens da população já se vir a sentir desde o início do mês, segundo os especialistas, na capital, disparou após os festejos do Sporting, a 11 de maio. Carlos Antunes revela mesmo que “neste momento, é Lisboa e Vale do Tejo que está a empurrar, a nível nacional, a faixa dos 20 aos 29 anos”.
O matemático alerta ainda para um recente aumento da incidência da infeção nos lisboetas com idades compreendidas entre os 30 e os 39 anos. “Os jovens entre os 20 e 29 anos estão com uma taxa de incidência de 158 casos por 100 mil, mas a incidência entre os 30 e 39 anos, além de ter subido para 97 casos por 100 mil habitantes, está a crescer a um ritmo muito rápido com valores na ordem de 8% ao dia”.
Testagem é o único travão que temos
Como já não podemos recorrer a medidas de confinamento que limitem os contactos, a única coisa capaz de travar a propagação da infeção parece ser, de acordo com os especialistas, a testagem em massa.
Se existirem ações preventivas para detetar mais cedo as cadeias de transmissão, Óscar Felgueiras, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, considera até “muito pouco provável” que Lisboa chegue aos 240 casos por 100 mil habitantes.
“Baixamos um bocadinho a guarda no que respeita a testagem”, alerta, no entanto, Manuel Carmo Gomes, revelando que, em maio, o país passou de uma média diária de mais de 40 mil testes para cerca de 35 mil. “Descurámos aquilo que é uma das regras básicas do documento das linhas vermelhas que é não deixar a testagem cair quando a incidência está cá em baixo”, reflete o epidemiologista, revelando que o descuido traduziu-se no aumento da positividade “de 1% para praticamente 2% em menos de uma semana”.
Testar em massa “não é nada de novo”, comenta o especialista em Saúde Pública da Universidade Católica de Lisboa Henrique Lopes, mas sublinha que dá trabalho e “é preciso gente para o fazer”. Identificar cada caso, mapear a cadeia de transmissão e testá-la rapidamente e de forma exaustiva é, portanto, a boia de salvação que todos os especialistas que falaram com a VISÃO atiram à região de Lisboa e Vale do Tejo. Até porque, como sublinha Carlos Antunes “não queremos nem novos estados de emergência nem confinamentos”.
Governo anuncia programa de testagem em massa
Após reunirem este domingo, 23 de maio, o Governo e as autoridade de saúde decidiram arrancar, esta semana, com um programa de testagem em massa, na cidade de Lisboa, focado no ensino, em empresas de maior dimensão e nas freguesias mais pequenas. Citado pelo jornal Público, o Ministério da Saúde explicou que “esta testagem tem três parâmetros (dirigida, programada e oportunística) e segue as diretrizes da DGS e da task force da testagem”. “No ensino, por exemplo, haverá uma intensificação da testagem em estabelecimentos de ensino secundário e superior”.
A capacidade para travar a transmissão e evitar a chegada à linha dos 240 casos por 100 mil habitantes, depende assim da eficácia com que esta ação será conduzida.
Só eu sei porque não quero voltar para casa
O que se passou na capital, a 11 de maio, nos festejos do Sporting, foi, segundo Henrique Lopes, “um exemplo de tudo o que não deve acontecer” e que não se pode voltar a repetir “em circunstância alguma”, mas tal “não pode ser argumento de julgamento moral de quem lá esteve”. Sem desresponsabilizar os adeptos, que considera terem tido falta de bom senso, o especialista sublinha que é inexplicável o facto de as autoridades terem deixado “chegar as coisas aquele extremo”.
“Quando entregamos parte da nossa liberdade a instituições para que elas possam impor o chamado bem comum, esperamos que, por exemplo, a polícia, no limite, em nome desse bem comum, nos impeça de fazer coisas. Isso onde é que esteve?”, questiona-se Henrique Lopes.
Já Carmo Gomes lamenta o clube “não ter dado uma demonstração de responsabilidade social e ter, pelo menos, incentivado os simpatizantes que estiveram naquele episódio a testarem-se rapidamente”. O epidemiologista considera que, apesar de a testagem não evitar a infeção, pode evitar a propagação em casa e entre os amigos e ajudar a controlar as cadeias de transmissão. “Lamento muito que não tenha havido uma palavra do clube sobre este assunto”.
Mas qual o verdadeiro peso que os festejos do título tiveram no recente crescimento da incidência no concelho de Lisboa? De acordo com o que foi divulgado pela Direção Geral da Saúde, apenas 20 casos de Covid-19 confirmados foram relacionados com o evento. Sem excluir a possibilidade que possam existir mais, Henrique Lopes defende a necessidade de um inquérito epidemiológico detalhado a fim de apurar realmente o que aconteceu e reconstruir, o mais rapidamente possível, as cadeias de contactos e transmissão.
“Há certamente aqui um contributo dos festejos”, defende Óscar Felgueiras. Apesar de considerar que este “não será o único fator”, os especialista sublinha que, “de facto, na última semana houve uma intensificação da subida, com as incidências da cidade de Lisboa a serem o dobro ou o triplo das incidências dos concelhos à volta”.
Também Carlos Antunes diz que“aquilo que ocorreu em Lisboa não ocorreu nas outras regiões” e que “tudo o que seja eventos acima de 10 mil pessoas apresenta uma probabilidade considerável de risco”. O especialista, que estima que, nos festejos do título, estivessem entre 4 a 8 pessoas infetadas por cada 10 mil participantes, explica que “como o Rt é de 1 e o número de contactos que cada pessoa tem num evento daqueles é elevado, se estivessem lá 100 mil pessoas, estaríamos a falar de 40 a 80 novos infetados”.
A par de Lisboa, Carlos Antunes e Manuel Carmo Gomes alertam para o crescimento significativo da taxa de incidência, na última semana, em concelhos limítrofes da capital como Cascais, Almada, Amadora e Loures. “São concelhos que estão a verificar um ressurgimento e isto está associado a algo que efetivamente aconteceu com uma grande dimensão”, conclui Carlos Antunes.
Onde estavam as autoridades?
Apesar de considerar lamentável o comportamento dos adeptos, Henrique Lopes acredita que o que se passou era praticamente inevitável, mas, quanto às autoridades, estas deveriam ter tido “uma atitude racional”, “estudar o que é plausível”, porque, “se deixarem colocar ecrãs no exterior do estádio é óbvio que as pessoas vão aparecer”.
O especialista em Saúde Pública defende que “todas as entidades, com graus diferentes de responsabilidade, falharam”. Se o Sporting não conseguiu prever “o impacto que poderiam ter as celebrações”, as autoridades policiais, “em vez de eliminar o fenómeno na origem”, deixaram-no crescer até ser impossível de controlar, as autoridades de saúde não disseram “não há ainda condições para o fazer” e a Câmara de Lisboa deu “permissão para um conjunto de coisas”.
Ainda assim, Henrique Lopes sublinha que está muito longe de acreditar que todos os novos casos que se têm registado em Lisboa se devam aos festejos leoninos. “Não sei qual o contributo específico dos festejos, do maior desconfinamento e da abertura ao turismo. Sei apenas que o conjunto de todos provocou um aumento com uma dimensão que tem de ser refletida e cortada pela raiz enquanto é controlável”.
Jovens lideram o aumento de novos casos
De facto, segundo os especialistas, apesar de uma aceleração significativa, a partir de 17 de maio, tanto o número médio de novos casos na região de Lisboa como a taxa de incidência na faixa etária entre os 20 e os 29 anos eram valores que já vinham a aumentar desde o início de maio.
O aumento de novos casos entre os mais jovens, sobretudo entre os 20 e os 39 anos, parece não se resumir à capital nem aos festejos do Sporting. Carlos Antunes conta que a dificuldade em controlar as festas privadas, que surgem como alternativa ao fecho de bares e discotecas, é algo sintomático por quase todo o país. “Quando se olha para as regiões Centro e Norte, apesar de não ser a mesma coisa que Lisboa e Vale do Tejo, também se verifica que a faixa etária dos 20 aos 39 já está a responder com um aumento ligeiro de incidência”.
Internamentos em enfermaria crescem entre os mais jovens
Nos últimos três dias houve ainda um aumento do número de casos de pessoas mais jovens nas enfermarias Covid-19 da região de Lisboa e Vale do Tejo, revela Manuel Carmo Gomes. “No dia 20 de maio estávamos com 55 pessoas nas linhas Covid dos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo e hoje estamos com 75. Quando vou ver as idades, o maior salto está predominantemente entre os 30 e os 39 (de 6 para 14 internados)”.
Quanto a este aumento poder ser mais um reflexo dos festejos de dia 11 de maio, Manuel Carmo Gomes considera “muito difícil não associar as duas coisas”. O epidemiologista sublinha que este grupo etário normalmente não tem razões para ser hospitalizado e que o aumento observado quer dizer que “houve muitos mais a serem infetados” sem precisarem de hospitalização. “Isto é um sinal de que houve aqui uma incidência alta nestes jovens adultos”.