Há 10 meses, em abril de 2020, Bill Gates apresentou uma perspetiva otimista sobre o combate às pandemias do futuro. Num artigo de opinião publicado na revista The Economist, o fundador da Microsoft afirmou que a crise da Covid-19 nos iria garantir três grandes avanços médicos para combater a próxima pandemia: progresso na produção de vacinas, testes em massa e um investimento em medicamentos antivirais. Estes três fatores, aliados a uma pesquisa continuada das doenças, serão essenciais para “combater doenças infecciosas”, ou até “ajudar a encontrar curas para o cancro”, disse o multimilionário.
A discussão sobre as pandemias do futuro não é nova. Até antes da Covid-19 se espalhar por todo o mundo, em 2014, Barack Obama alertou num discurso que os EUA se tinham de preparar para uma pandemia mundial iminente. Neste anúnicio, realizado pouco tempo depois de um surto de ébola ter colocado o mundo em alerta, Obama sublinhou a importância de construir uma infraestrutura de saúde pública que fosse capaz de combater esta hipotética (mas provável) pandemia. Pouco foi feito. Seis anos depois, quando começaram a ser anunciadas as primeiras mortes de Covid-19 nos EUA, Trump afirmava que “ninguém seria capaz de prever que iria haver uma pandemia com estas proporções.”
Perante estas previsões e avisos mais ou menos positivos, a verdade é que o mundo não está preparado para lidar com as pandemias do futuro. Quem o afirma é o mais recente relatório da Fundação Access to Medicine, uma organização sem fins lucrativos financiada pelos Governos do Reino Unido e Holanda. De acordo com este relatório, as maiores empresas farmacêuticas do mundo não estão preparadas para as futuras pandemias, apesar da sua resposta massiva à Covid-19. Estes novos vírus, com taxas de mortalidade significativamente altas, ainda não têm a atenção que merecem por parte da indústria que produz as suas curas.
Para além do lucro: a importância da ajuda aos países mais pobres
Ao longo do seu relatório, a Fundação analisou vinte grandes empresas farmacêuticas – como a Pfizer, a Astrazeneca ou a Johnson & Johnson. Segundo as suas conclusões, nenhuma das empresas tinha quaisquer projetos para combater os coronavírus antes do início da pandemia da Covid-19, apesar de anos de avisos sobre os potenciais perigos de uma pandemia causada por este tipo de vírus. Foi apenas depois da ameaça se tornar global que a indústria investiu seriamente nesta área – neste momento, contam-se um total de 63 vacinas e medicamentos aprovados e em desenvolvimento para combater a Covid-19.
O grande problema da ação destas farmacêuticas, afirma a Access to Medicine, é que se moveram apenas pelo lucro: “a indústria só avançou quando se tornou claro que a pandemia afetava países ricos e pobres, abrindo caminho a ganhos significativos.” No entanto, alerta a Fundação, “nem todas as pandemias vão levar a esta possibilidade de lucros pela produção de novos produtos.” Enquanto não houver um investimento significativo destas empresas na preparação para futuras pandemias, que não olhe apenas ao possível lucro, o mundo continuará altamente vulnerável a estas doenças – em particular os países mais pobres.
Dada a falta de antibióticos e outros medicamentos em países mais pobres, estes não só são estão vulneráveis a pandemias, como contribuem em parte para a disseminação de doenças com resistência antibiótica. Jayasree K. Iyer, diretora executiva da Fundação, alertou para a possibilidade de uma futura pandemia com uma doença resistente a medicamentos: “este cenário não só é impensável, como é inevitável”, disse ao jornal The Guardian, “a não ser que a indústria farmacêutica invista seriamente no desenvolvimento de antibióticos substitutos”, de forma a evitar que os vírus criem resistência aos atuais medicamentos.
No seu relatório, a Access to Medicine avaliou a variedade de medicamentos disponível para 82 doenças diferentes em países pobres. Segundo as suas conclusões, as empresas farmacêuticas continuam a focar-se no desenvolvimento de medicamentos para poucas doenças, como a SIDA, tuberculose, malária, Covid-19 e cancros. Para além desta falta de investimento na produção de novos antibióticos substitutos, vários dos medicamentos nem estão a chegar a estes países, mesmo passados anos de serem lançados pela indústria. A falta de preços acessíveis, autorizações e doações colocam sérios entraves aos 106 países analisados pela Fundação – mas o potencial impacto desta falta de ajuda é mundial, alastrando-se a países ricos e pobres.
Vírus Nipah: a pandemia do futuro?
Entre alguns dos vírus enunciados pelo relatório da Fundação como potenciais pandemias do futuro, destaca-se o “Nipah.” Com sintomas que variam entre problemas respiratórios graves, encefalite e edema cerebral – o que justifica a taxa de mortalidade que ascende aos 75% -, “o vírus Nipah é outra doença infecciosa emergente que causa grande preocupação”, disse Iyer, alertando que este “pode rebentar a qualquer momento.” E, como tinha assinalado no relatório, “esta próxima pandemia pode ser resistente a medicamentos.”
O vírus Nipah foi identificado pela primeira vez em 1999, depois de um surto entre criadores de porcos da Malásia. Também foi identificado no Bangladesh em 2001, onde têm ocorrido surtos anuais da doença, assim como no Este da Índia. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), apesar de a maioria das transmissões para humanos ter resultado de contacto direto com porcos e os seus tecidos contaminados, já se registaram casos de transmissão entre humanos, nas suas famílias e com os cuidadores dos doentes.
O Nipah é uma das 10 doenças infecciosas identificadas pela OMS com o maior potencial de risco para a saúde pública mundial. Por enquanto, a prevenção é feita por cientistas e passa por a manter os morcegos, hospedeiros do vírus, debaixo de olho – o que pode ajudar a evitar a sua transmissão para humanos. No entanto, neste momento nenhuma empresa farmacêutica tem qualquer projeto de investigação sobre qualquer uma destas 10 doenças – tal como nenhuma empresa destas tinha quaisquer projetos sobre os coronavírus antes de o vírus da Covid-19 se espalhar pelo mundo inteiro.
Vírus como o Nipah, com potenciais efeitos muito mais devastadores que a Covid-19, evidenciam a urgência em olhar para além do lucro na investigação das pandemias do futuro pelas farmacêuticas. O relatório da Fundação sublinha que a antecipação é a chave: “a preparação para uma pandemia requer uma resposta robusta e coordenada de entidades dos setores privados e públicos, de forma a investigarem formas de combater as doenças infecciosas emergentes.” Perante estes perigos emergentes, torna-se urgente retirar uma lição da pandemia em que vivemos: o processo de desenvolvimento, aprovação, produção e distribuição dos medicamentos tem de ser preparado antes dos surtos dos vírus – caso contrário, pode ser tarde demais para impedir a pandemia do futuro.