“Deixa lá isso.” “Toma o comprimido que isso passa.” O “isso” é a ponta do icebergue, aquilo que não se quer ver, enfiando a cabeça na areia como a avestruz. Era assim até chegar o vírus microscópico que deixou o mundo em suspenso e retirou leveza à palavra “viral”, conotada com o crescimento exponencial de partilhas nas redes sociais. “Vai ficar tudo bem”, o mecanismo de defesa do confinamento, começou com os post-its de uma escritora italiana nas ruas, e a mensagem de alento, em cartazes com arco-íris afixados nas janelas das casas e videoclips a condizer na internet, converteu-se no ícone da pandemia.
As novas vagas da Covid-19, o prenúncio de uma depressão económica global e o crescimento “viral” da ansiedade, da depressão e de níveis de stresse sem precedentes despertaram-nos, a todos, para o “novo normal”, que não se imaginava tão longo e devastador. Num ápice, ficou exposta a fragilidade dos modelos de bem-estar, em especial das sociedades desenvolvidas.
Na edição de julho, inteiramente dedicada à saúde mental, o site de notícias Quartz falava de um ponto de viragem da saúde mental e da urgência em remodelar o sistema. A Organização Mundial da Saúde viu-se forçada a assumir a dura evidência: não se levou a sério, até agora, o bem-estar emocional das pessoas, e a fatura desse fracasso será insustentável a longo prazo.
Se nada está bem, fazer de conta que de que está pode ter consequências trágicas.
Num agosto que de silly season teve pouco, o título de um artigo do jornal The Washington Post pôs o dedo na ferida: “Está na hora de abandonar a ‘positividade tóxica’.” Não é que ser otimista esteja errado; o problema está em persistir em mensagens positivas – ainda que seja socialmente mais aceitável, arrisca-se ser contraproducente por alienar e isolar quem está em situações de desemprego, insegurança e desigualdade social. A prová-lo, as conclusões de um estudo da equipa de Brett Ford, da Universidade de Toronto, que avaliou a relação entre aceitar emoções negativas e a saúde psicológica, numa amostra de 1 300 adultos: evitar reconhecer momentos de negatividade levava as pessoas a sentirem-se pior. E agora?
Acolher o elefante branco
O pensamento positivo deixa de ser benéfico e começa a ser tóxico quando os momentos de dor são postos debaixo do tapete e a vida perde sentido.
Há um século, um jovem austríaco judeu estava no início de carreira, após ter concluído os estudos em Neuropsiquiatria com sucesso. Viktor Frankl ia ser pai quando eclodiu a II Guerra Mundial e o Holocausto nazi, tendo sido deportado, com os seus familiares, para diferentes campos de concentração. O pesadelo teve um fim, e ele suportou-o trazendo à mente a presença da mulher grávida e momentos de felicidade, os vividos e fantasiados. O pesadelo teve um fim mas, após ser libertado, sentiu uma dor profunda: ele fora o único sobrevivente.
O bestseller internacional O Homem em Busca de um Sentido (1946) é um manifesto contra a desumanização da espécie e um guia para superar as mais duras adversidades. Vencer a adversidade passava, segundo Frankl, por criar um objetivo e encontrar um sentido futuro para a existência, por mais pequeno que pareça. Os tempos mudaram, talvez para melhor, mas é provável que se tenha ido longe demais, pela valorização excessiva do otimismo e do culto hedónico e individualista. No prefácio da edição de 1984, o autor e criador da psicanálise existencial advertiu: “Não procurem o sucesso. (…) Como a felicidade, é um efeito colateral da dedicação pessoal a uma causa maior.” Talvez esse tempo tenha chegado agora, pois a resiliência pede um positivismo são.
Paul Wong é um estudioso de Viktor Frankl e um dos líderes mundiais de um novo paradigma: a Psicologia Positiva 2.0 (PP2.0) ou psicologia existencial positiva. Docente na universidade canadiana de Trent, lançou, este ano, o livro Made for Resilience and Happiness: Effective Coping with Covid-19, que reúne relatos pessoais, investigações e experiências clínicas e veicula uma mensagem simples: a saída do profundo mal-estar atual obriga-nos a olhar de frente para o sofrimento humano e a promover capacidades inatas – a resiliência e a gratidão –, para atravessarmos horas sombrias com otimismo realista. Porque a vida não é um mar de rosas.
“Tenho sido alvo de discriminação por ser asiático e luto contra o domínio da visão ocidental da Psicologia, pois não representa o mundo nem tem em conta o processo dialético”, diz à VISÃO, por email, o homem que foi um “jovem refugiado deprimido em Hong Kong, durante os anos 50”, e alcançou notoriedade no Canadá. “Como minoria na América do Norte, precisamos de acreditar numa missão maior do que o sucesso pessoal”, nota. Entre as mudanças a fazer no campo da intervenção psicológica, propõe o conceito de “desenvoltura aprendida”, que deve coexistir com o “desespero aprendido” (um termo da Psicologia) e “abraçar o sofrimento” em vez de evitá-lo.
Cada emoção, sua função
Chegámos ao fim da era da autoajuda e das correntes New Age, apelidadas de “pseudociência” por apregoarem, sem evidência científica, uma visão distorcida (e omnipotente) do indivíduo? “Muita gente interpretou, erroneamente, que ao estudar o positivo se negligenciava o negativo”, esclarece Helena Marujo, especialista em Psicologia Positiva. “Esse silenciar nunca esteve na agenda dos investigadores, mas deu muito jeito a quem queria apanhar a onda e vender livros e formações a partir dos dados desta ciência.”
“Florescemos melhor perante os nossos sofrimentos quando sabemos os passos a dar em direção à luz e os damos bem acompanhados”
Helena Marujo Especialista em Psicologia Positiva
Este é um assunto complexo que se presta a generalizações. O “vai ficar tudo bem”, tal como o “sempre” e o “nunca”, não é bom conselheiro. A este respeito, a docente e investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas lembra que as dicotomias não nos levam a bom porto. “Documentários sobre Auschwitz mostram como o humor, a leveza psicológica, o foco nas relações interpessoais não instrumentais e a coragem estiveram ao serviço da sobrevivência e da saúde.”
No cenário pandémico, o mal-estar esteve sempre à mesa: “Choramos os mortos, os funerais que não se fizeram, partilhamos o medo dos contágios, o desespero da economia destruída, o peso da solidão, o confronto com a nossa vulnerabilidade.” O aumento dos problemas mentais nesta altura pode ser atribuído “ao desconhecimento de instrumentos e de práticas de saúde psicológica que nós, humanos, temos para lidar com o difícil”. Ou seja: treinar as emoções positivas, para que as negativas não nos paralisem.
Helena Marujo lembra um estudo em que as pessoas tinham de referir quando tiveram mais orgulho em ser quem eram e estiveram no seu melhor, e muitas dessas situações aconteceram nos momentos mais difíceis das suas vidas, mas a confiança na capacidade de enfrentá-los é que as fez seguir em frente. “Florescemos melhor perante os nossos sofrimentos quando sabemos os passos a dar em direção à luz e os damos bem acompanhados.”
Parar, sentir e… intervir
A conquista da felicidade implica a busca do prazer ou a procura de um propósito de vida? O dilema remonta à era pré-cristã e, muitos estudos depois, a dicotomia persiste, embora faça cada vez menos sentido. Catarina Rivero, da Associação Portuguesa de Estudos e Intervenção em Psicologia Positiva, sublinha que, “num momento de maior dor emocional, o significado ou propósito de vida podem tornar-se fundamentais”. Porém, “numa situação de crise existencial profunda, as emoções positivas, o relaxamento, as alegrias, o amor e a paz ajudam-nos a reencontrar esse sentido de vida”.
“Não basta dizer às pessoas para fazerem exercício físico ou meditar; é melhor dar-lhes acesso a serviços em que possam ser ouvidas”
Catarina Rivero Psicoterapeuta
São as duas faces da moeda da felicidade. A psicoterapeuta adianta que, “quando não está tudo bem ou corre mesmo mal, é preciso parar, sentir e refletir sobre a importância do estar e do fazer”. E remata: “Não basta dizer às pessoas para fazerem exercício físico ou meditar; é melhor dar-lhes acesso a serviços em que possam ser ouvidas, expressar emoções e serem compreendidas por profissionais qualificados.”
Se as mensagens de esperança no contexto do confinamento foram “um gesto espontâneo e genuíno pela necessidade de se sentir que não estava tudo perdido e de se ver uma luz ao fundo do túnel”, agora tornou-se óbvio que “o que estamos a viver não é uma corrida de cem metros mas uma maratona”. A afirmação é de Daniel Sousa, psicoterapeuta existencial e docente do ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa. “É evidente que não vai correr tudo bem”, comenta. “Tenho reservas quanto à aposta na solução farmacológica, a que está mais à mão, sem atender ao relatório do Conselho Nacional de Saúde, intitulado, ironicamente, Sem Mais Tempo a Perder.”
Tomando o exemplo do Reino Unido, que, em 2006, contratou dez mil novos psicólogos e psicoterapeutas num plano de investimento a sete anos, o clínico lamenta que não seja essa a via adotada no nosso país: “Apesar das evidências científicas sobre a relação de custo-benefício da intervenção psicológica a longo prazo, nunca houve coragem política para se fazer esse investimento.”
Num cenário de 2,5 psicólogos por cada 100 mil utentes, “as empresas e instituições vão enfrentar riscos psicossociais e precisam de um enquadramento jurídico para a saúde mental”. A aposta está na criação de programas de apoio parental e de prevenção para ajudar as crianças a gerir emoções. É ainda necessário assumir que “sentir tristeza ou medo – em situações de luto, layoff e desemprego, por exemplo – é útil; calar essas emoções é que traz mais sofrimento e impede-nos de seguir em frente”, acrescenta, evocando o filme de Pete Docter, Divertida-Mente (2015), que ilustra isso mesmo.
Por fim, deixa a nota: “Bom seria começar por reconhecer que estar mal é parte da solução, sem ser culpabilizado ou apenas medicado.” Ou seja: juntar à mesma mesa a razão e a emoção, numa saudável dialética, sem excessos (nem intoxicações) de parte a parte.
3 perguntas a Paul T. P. Wong
“Focar-se no lado positivo dos problemas não os faz desaparecer”
Presidente do Meaning-Centered Counselling Institute, em Toronto, no Canadá, e editor do International Journal of Existential Positive Psychology
O que a Psicologia Positiva 2.0 traz de novo para o conceito de bem-estar mental?
Uma visão mais adaptativa do mundo. A PP2.0 permite-nos descobrir que a vida é cheia de perigos mas também tem bondade e alegria, e mostra que todos somos capazes de desenvolver as competências de resiliência e de felicidade. Viktor Frankl foi um profeta de esperança no capítulo mais sombrio da História, o precursor da Psicologia Positiva do significado e da realização através do sofrimento. Abraçar e transformar o sofrimento é o caminho para encontrar a felicidade sustentável.
No século passado, já se dava importância às emoções negativas. O que mudou?
É verdade. Carl Jung reconheceu o lado negro de cada ser humano e Sigmund Freud, nos seus últimos trabalhos, admitiu exceções ao princípio do prazer: a força oposta da violência e da destrutividade nos humanos. Há psicólogos a investigar a “tríade negra da personalidade” (narcisismo, maquiavelismo e psicopatia), com artigos publicados na Scientific American. Precisamos de levar o nosso lado obscuro em conta nos estudos sobre a plenitude.
Porque é “tóxico” dar primazia ao lado risonho da vida em tempos de pandemia?
Focar-se no lado positivo dos problemas não os faz desaparecer e, nalguns casos, contribui para agravá-los. Por exemplo, dizer “seja feliz” a quem está em pobreza extrema ou com Covid-19 parece insensível e até cruel. Ignorar os problemas e as ansiedades existenciais sociais, em vez de tratá-las, pode ser tão mortal como fechar os olhos ao novo coronavírus.