Conhecer a primeira pessoa infetada por um vírus pode trazer respostas importantes sobre uma epidemia. Mais, além da fonte de contágio e do circuito de transmissão, pode também abrir caminho a previsões mais rigorosas do processo de evolução da própria doença e, claro, da estratégia preparada pelas autoridades de saúde. No entanto, a identificação do “paciente zero” nem sempre é uma tarefa fácil, muitas vezes impossível.
Será que, em situações de epidemia, o primeiro doente infetado a manifestar sintomas pode ser declarado como o “paciente zero”? Esta é, desde logo, a pergunta de partida e para a qual não existe consenso, mesmo dentro da comunidade científica. Aliás, muitos investigadores evitam usar o termo por considerarem que este põe em causa questões éticas relevantes.
Thomas Friedrich, professor da Escola de Medicina Veterinária da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, diz que a definição do “paciente zero” pode oferecer uma falsa ilusão sobre a possível origem de uma epidemia, para lá de presumir a atribuição de “culpa” ao doente. “No entanto, é cientificamente importante para as pessoas e para a saúde pública entender os casos-índice, para que possamos saber como as doenças estão a entrar na comunidade e como impedir a sua disseminação”, rematou Friedrich, citado pela CNN.
Alguns cientistas propõem uma outra designação, que defendem ser mais rigorosa e clara no que toca ao processo de identificação dos animais ou dos primeiros casos registados entre humanos transmissores de uma determinada bactéria ou vírus: “super-propagadores”. Como o próprio nome indica, são animais ou pessoas cujos comportamentos resultam na transmissão de uma bactéria ou vírus a um elevado número de pessoas. E exemplos não faltam.
Ao longo da história das últimas grandes epidemias são muitos os casos identificados como “pacientes zero”, ou “super-propagadores”, para os quais ficou reservado um lugar na História dos surtos epidemiológicos que assolaram o mundo, sobretudo nos últimos dois últimos séculos.
A febre da Maria Tifoide
Um dos primeiros exemplos de “super-propagadores” é Mary Mallon, mais conhecida como Maria Tifoide. Durante 15 anos (1900-1915), esta imigrante irlandesa, cozinheira de profissão, a viver em Nova Iorque desde 1888, terá infetado diversas famílias com a febre tifoide, uma doença bacteriana aguda que se transmite essencialmente através da água e dos alimentos. A infeção, causada pela bactéria Samonella typhi, atinge o intestino dos infetados, provocando sintomas como febre, dor abdominal, vómitos e diarreia. Na altura, foram detetadas cerca de 60 pessoas infetadas; três acabaram por morrer.
No entanto, as autoridades de saúde americanas rapidamente referenciaram esta mulher como a “paciente zero”, obrigando-a a permanecer em quarentena em duas ocasiões num total de 26 anos, embora nunca tenha manifestado sintomas da doença – o vírus, porém, permaneceu ativo no seu organismo com um alto risco de contágio até à data da morte.
O médico que disseminou a SARS pela China
Mais recentemente foi notícia o caso do médico chinês, Liu Jianlunde, 64 anos, que terá infetado pelo menos 16 pessoas com a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) durante uma curta estada, em fevereiro de 2003, num hotel em Hong Kong, na China.
De acordo com o boletim da Organização Mundial de Saúde, os cerca de 16 hóspedes infetados terão transmitido o vírus a várias pessoas após terem viajado para outros países. Ao fim de quatro meses, o número de doentes infetados com a SARS aumentou para 4 mil casos, assim como o número de mortes, 550. No final desse ano, foram registados 8 456 infetados em mais de 30 países; 809 resultaram em mortes.
Ao que tudo indica, o médico terá contraído a doença no hospital em que trabalhava, perto da província chinesa de Guangdong, onde se acredita ter começado este surto. Os últimos estudos atribuem a origem do vírus a um grupo de morcegos, portadores naturais da doença, que terão infetado diversos animais até chegar às primeiras comunidades humanas.
Gripe aviária (H5N1)
Também em 2003, Capitan Boonmanuch, de apenas 6 anos, ficou conhecido por ser a primeira vítima mortal da gripe aviária, na Tailândia. O rapaz terá contraído a doença depois de ter contactado com uma galinha infetada durante cerca de 2 minutos, o tempo que demorou a transportar o animal até casa do seu tio.
Segundo a OMS, entre 2003 e 2016 foram registados em todo o mundo perto de 900 casos de infeções pelo H5N1 e 452 mortes. O vírus terá sido descoberto pela primeira vez em 1997, durante uma grande epidemia que começou nos aviários de Hong Kong, na China. Nessa altura, terão sido abatidas mais de um milhão de aves na tentativa de travar o surto.
A gripe aviária continua ativa em algumas regiões do sudoeste asiático. No entanto, sabe-se agora que o vírus apenas se transmite de aves infetadas para pessoas. Os sintomas aparecem cerca de 8 dias após o contágio e a maioria dos casos relata tosse, febre, dores de cabeça e falta de ar.
Gripe Suína (H1N1)
Edgar Hernandez tinha 5 anos quando os médicos lhe diagnosticaram gripe suína, o primeiro caso por infeção do vírus H1N1 ou gripe A, como ficou conhecido. O caso foi registado na cidade mexicana de La Gloria, em 2009, tornando-se no ponto de partida da última grande pandemia antes do Covid-19. A doença terá sido descoberto pela primeira vez em 1918, durante um outro surto, e tal como o H5N1 (da gripe aviária) este vírus também teve origem nas aves, embora os cientistas acreditem que foram porcos infetados que transmitiram a doença para as comunidades humanas.
Segundo o boletim da OMS, até julho de 2009, foram registados quase 95 mil casos por infeção em mais de 135 países; 429 pessoas morreram. O México e as regiões do sudeste asiático foram as áreas mais afetadas pela pandemia. Em Portugal, até agosto de 2009, o vírus já tinha infetado mais de duas mil pessoas, segundo dados da DGS.
Ébola
O vírus Ébola foi um dos últimos a preocupar as autoridades de saúde. Em agosto de 2014, a OMS declarou o estado de emergência nas regiões da costa ocidental de áfrica e, no mês seguinte, o Conselho de Segurança da ONU decretou o surto de ébola como uma “ameaça à paz e segurança internacionais”. Guiné-Conacri, Serra Leoa e Libéria foram as regiões mais afetadas pelo surto. Um ano depois, a OMS contabilizou ainda cerca de 4 mil casos infetados na Guiné-Conacri, mais de 13 mil na Serra Leoa e 10 mil na Libéria.
Emilie Ouamouno, de apenas 2 anos, foi o primeiro caso suspeito de infeção por ébola na Guiné-Conacri. A epidemia terá tido origem nos morcegos e, segundo as autoridades de saúde do país, o vírus terá surgido de “uma única introdução do vírus na população humana”.
O vírus pode ser transmitido através de sangue, secreções ou fluidos corporais de animais infetados. Os sintomas traduzem-se em vómitos e diarreia, podendo em situações mais avançadas da doença provocar hemorragias internas fatais. Emilie, tal como a avó, a mãe e a irmã, de apenas 2 anos, acabaram por morrer.
O sul-coreano que levou a MERS à Ásia
A Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS), doença infeciosa da família do coronavírus, deflagrou em 2012 na Arábia Saudita. Os cientistas acreditam que este vírus tenha tido origem nos camelos, embora as investigações sobre a principal fonte de contaminação da doença ainda esteja por apurar. Só esse ano, o país registou quase duas mil pessoas infetadas.
No entanto, em 2019, surgiram os primeiros casos de infeção por MERS na Coreia do Sul. As autoridades de saúde do país não tardaram em identificar o “paciente zero” – alegadamente um homem de 68 anos, com um longo histórico de viagens.
Segundo as autoridades, este homem de nacionalidade sul-coreana terá passado pelos Emirados Árabes Unidos e Catar antes de ficar infetado. Após regressar ao país, o sul-coreano desenvolveu sintomas que o conduziram até um hospital local, em Seul, onde os médicos acabaram por lhe diagnosticar a infeção por MERS. Ao todo, este sexagenário terá infetado na região quase uma centenas de pessoas, 14 antes da sua hospitalização e 82 durante o período em que esteve a receber tratamento médico.