“Terrorismo nutricional.” A expressão é da endocrinologista franco-brasileira Sophie Deram, que a criou para se manifestar contra os regimes que proíbem um grupo alimentar importante: “Colocar uma população inteira sem açúcar, sem glúten ou sem lactose é uma loucura!” Mas essa pressão existe de forma cada vez mais premente – ora tira daqui, que este faz mal, ora tira dali, que isso já não é como antigamente –, o que faz com que cada vez mais pessoas não saibam o que servir no prato.
A variedade, sempre se disse, é a chave da alimentação saudável. Não devem existir proibições, mas sim a ingestão de todos os grupos alimentares com moderação e, de preferência, preparados em casa. Mas se esta teoria fosse assim tão fácil de pôr em prática não teríamos mais de metade da população com doenças relacionadas com a alimentação desadequada, nem os gurus das dietas da moda estariam tão ricos.
Alcançar o “ponto E”, esse sacrossanto equilíbrio na nossa relação com a comida, implica mudar a forma como a olhamos e o papel que ela tem na nossa vida. Exige mudanças comportamentais profundas, só possíveis com uma séria aposta na educação alimentar, para que possamos comer sem culpa e com consciência.
Sophie Deram, que tem alcançado grande sucesso no Brasil com o seu programa de “transformação alimentar”, resume de forma clara este paradoxo. “Se voltássemos a comer alimentos verdadeiros, para os quais fomos adaptados, não haveria tanta preocupação com a contagem de calorias, com o engordar. O que teríamos era uma consciência maior de como nos estamos a sentir. Estou com fome? Vou comer. Estou sem fome? Vou parar de comer!”
A isto se chama, em inglês, mindful eating (alimentar-se de forma consciente). E é nessa linha que o flexitarianismo ou o reducetarianismo (tradução livre do inglês reducetarian) estão a traçar caminho. Em ambos os casos advoga-se o ‘tal’ equilíbrio – não é necessário eliminar de forma radical o consumo de carne e peixe, mas sim reduzi-lo, aumentando a quantidade de vegetais e frutas na dieta. Além disso, privilegia-se a produção local, os alimentos sazonais e sustentáveis e a diversidade à mesa.
Além de promover a melhoria do estado de saúde geral, através do aumento do consumo de alimentos protetores, este tipo de postura fomenta também a socialização à mesa, ao banir as proibições.
A defesa do “com conta, peso e medida” tem-se propagado por oposição aos extremismos que iremos tratar nestas páginas, e ao movimento free from (lactose ou glúten). A evidência científica tem vindo a demonstrar que, para quem não tem alergia ou intolerância, retirar uma substância a um produto alimentar raramente o torna mais saudável. Porém, o estudo Health and Wellness in Portugal, da empresa de marketing estratégico Euromonitor, estima que até 2020 o aumento do consumo de “produtos livres de…” seja na ordem dos 7%, com os millennials (nascidos na década de 1980) entre os mais fervorosos adeptos deste tipo de alimentos. Não se estranha, por isso, que tantos produtos queiram apanhar esta onda, colocando avisos como “leite sem glúten”… quando nenhum o tem na sua composição.
“É proibido proibir” já foi o lema de gerações passadas e deveria ser recuperado agora, para libertar milhões deste “terrorismo nutricional”. Na comida como na vida, tudo deve ser q.b..
7 mitos
Muito do que se diz por aí acerca da nossa alimentação carece de fundamento científico. Aqui ficam os principais engodos nutricionais
Dieta Paleo
Como os antepassados
Se já passaram 330 gerações e 10 mil anos desde o Paleolítico, porque deveremos comer como nessa época? “Se isso significar passar a ingerir menos sal, açúcar, gorduras hidrogenadas e alimentos excessivamente processados e mais frutos e hortícolas, certamente teremos ganhos em saúde”, responde Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas. E neste caso até existe alguma evidência científica em relação aos benefícios de uma dieta baseada em proteína animal: estudos com diabéticos demonstraram uma redução dos níveis hemoglobina, triglicerídeos, pressão arterial, peso, perímetro da cintura e um aumento dos níveis de colesterol HDL. Mas ainda são poucos os dados e não há conclusões sobre os riscos a longo prazo deste regime que pressupõe que, entretanto, o nosso organismo não se modificou.
O chefe Nuno Queiroz, que se especializou em alimentação saudável e defende um menu mais assente em hidratos de carbono e em poucos alimentos de origem animal, lembra que, atualmente, os adultos precisam de apenas “70 a 80 gramas de proteína por dia”. Além disso, convém não esquecer que se recomenda que 40 a 60 por cento da nossa alimentação provenha de hidratos de carbono.
No Paleolítico, quando ainda nem o fogo tinha sido descoberto, caçava-se, comiam-se sementes e frutos da época, marisco, peixe e ovos – muita proteína (39% proveniente de gorduras) e poucos hidratos, portanto. Só que ninguém era sedentário. Hoje, vamos buscar comida às prateleiras do supermercado e chegamos lá de carro, depois de um dia inteiro à secretária. No site oficial da dieta Paleo (The Paleo Diet) explica-se que os hidratos permitidos “têm um baixo índice glicémico, ou seja, provocam aumentos lentos e limitados dos níveis de açúcar e de insulina no sangue. Níveis excessivos de insulina e açúcar na corrente sanguínea são conhecidos por promover a síndrome metabólica.”
De facto, os açúcares simples e os alimentos processados ficam de fora deste cardápio criado por Loren Cordain, um professor de Ciências da Saúde e Exercício na Colorado State University, nos EUA, mas também as leguminosas, os laticínios, os cereais e a batata, o que compromete muito a máxima da variedade à mesa.
Crudívoros
Sem cozinhar
Este regime tem por base fruta, legumes, frutos secos, grãos e sementes germinadas. Tudo cru, sem um pingo de tacho, para preservar intactas as características destes alimentos. Um exagero? Bom, nem tudo é preto-no-branco. “Se estivermos a falar de legumes, hortaliças e frutas, temos alguns benefícios em ingeri-los crus porque cozinhados perdem vitaminas que são solúveis na água”, nota a nutricionista Alexandra Bento. Contudo, “a ação da temperatura e da destruição mecânica das paredes celulares dos legumes permite tornar mais disponíveis alguns compostos como os carotenoides.” Já para não falar da maior dificuldade em digerir determinados alimentos que não vão ao fogo e do maior cuidado com a segurança do que se come.
O frutarianismo – quando a dieta se baseia exclusivamente em fruta e alguns punhados de sementes e oleaginosas – é apontado como um extremismo desta (já de si extrema) opção alimentar. O americano Stephan Guyenet, neurocientista especializado no estudo do comportamento humano em relação à comida, diz respeitar as crenças éticas e ambientais que estão por trás deste modo de viver, mas não deixa de sublinhar que se “trata de uma dieta muito restritiva” e, por isso, perigosa.
Sem glúten
Só para doentes
Se for a um aniversário num restaurante italiano e não puder escolher nem massas nem pizzas, encontrar alguma opção na ementa será um desafio: provavelmente acabará a comer uma salada ou só se juntará ao grupo mais tarde. Esta história vem ao caso para demonstrar como a socialização pode ficar em causa quando, sem qualquer problema de saúde, se interditam produtos. E a demonialização do glúten é o exemplo mais extremo destas modas, porque tem muitos adeptos em todo o mundo. A especialista Alexandra Bento é perentória: “Para todas as pessoas que não são intolerantes ou celíacas, que é a grande maioria da população, torna-se completamente desnecessário retirar o glúten da sua dieta. Além de não existir qualquer evidência científica credível que comprove que a sua retirada beneficia a saúde, os alimentos que contém essa proteína (cereais como o trigo, o centeio ou a cevada), são importantíssimos para o nosso bem-estar.”
Ao mesmo tempo deixe-se aqui a ressalva de que muitos dos produtos gluten free, além de mais caros, são compensados da sua ausência com doses elevadas de gordura ou açúcar, para torná-los mais saborosos. Um pão a que se retire o glúten não é mais saudável do que um composto, naturalmente, por farinha, água e sal. O que se pode, isso sim, é variar no tipo farinha, escolhendo pães de alfarroba, por exemplo, que é isenta desta
proteína.
Jejuns
Ora come ora não come
Apesar de a ciência não ser estática, todos os manuais defendem que se deve comer várias refeições ao longo do dia, pois é assim que controlamos melhor o apetite e a absorção dos nutrientes. Daí que seja algo incompreensível que se advogue o seu contrário, ao defender-se um método de jejum intermitente (o número de horas que se está sem comer depende da versão que se siga). “Este método ainda causa muita divergência entre a comunidade científica, uma vez que são discutíveis as suas vantagens”, alerta a nutricionista Ana Rita Lopes. Numa fase inicial, é bastante exigente e difícil de levar a cabo, pois podem sentir-se uma série de alterações, como fraqueza muscular, cansaço, alterações de humor, irritabilidade ou desidratação.
O processo fisiológico, violento, está estudado. “Os nutrientes consumidos na refeição não são metabolizados, mas sim as reservas do organismo, sendo utilizada a gordura como fonte de energia. Inicialmente há uma produção de energia através da glicose que temos como reserva a nível hepático. Quando esta se esgota, inicia-se um processo de transformação de energia através dos ácidos gordos que temos acumulados”, explica a especialista, mostrando como assim se perde peso.
Vegan
Mestrado em nutrição, exige-se
“Ainda não se sabe tudo acerca da forma como o nosso corpo interage com a comida. Por isso, cortar com um ingrediente a que estamos habituados há milhões de anos, pode ser arriscado.” O aviso é de Stephan Guyenet, neurocientista dedicado há anos ao estudo do mecanismo da fome no cérebro. E aqui acrescenta-se que é preciso saber muito de nutrição para seguir um regime vegan, exclusivamente de origem vegetal. Se não se tiverem cuidados, há carências difíceis de suprir no prato, só compensáveis com suplementos vitamínicos.
“Encontramos muito nutrientes nos produtos de origem animal que não estão presentes nos vegetais, como a vitamina B12, e outros que nos vegetais se encontram em menor quantidade ou menor biodisponibilidade (capacidade de serem absorvidos), como o ferro e o cálcio. Se não se tiverem em conta estes aspetos, será uma alimentação pouco equilibrada e deficitária”, explica a nutricionista Ana Rita Lopes, do Hospital Lusíadas. Além disso, nem sempre os pratos vegan são mais saudáveis que os de carne ou peixe – podem ser mais ricos em hidratos de carbono ou gordura, de modo a melhorar o seu sabor.
(Artigo publicado na VISÃO 1286 de 26 de outubro)