“Nestes tempos de crise climática, perda de biodiversidade e insegurança alimentar renovada, uma abordagem científica e baseada em evidências é essencial em todos os aspetos. Agora, mais do que nunca, devemos elevar-nos acima da ideologia e do dogmatismo. É por isso que nós, abaixo-assinados, vos exortamos a considerarem cuidadosamente os benefícios de adotar Novas Técnicas Genómicas nas vossas próximas decisões parlamentares. Como cidadãos preocupados que acreditam no poder da ciência para melhorar as nossas vidas e a nossa relação com o planeta, imploramos que votem a favor das Novas Técnicas Genómicas, alinhando as vossas decisões com os avanços na compreensão científica.”
É assim que começa a carta aberta, endereçada aos eurodeputados, assinada por mais de mil cientistas, entre os quais 35 vencedores de prémios Nobel. A carta, coordenada pela associação ambientalista WePlanet (ex-RePlanet), a que a VISÃO teve acesso em primeira mão, tenta sensibilizar os parlamentares antes de dois momentos decisivos: na próxima quarta-feira, 24, vai discutir-se, na Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar, uma proposta da Comissão Europeia para não equiparar as Novas Técnicas Genómicas (NGT, na sigla internacional) aos organismos geneticamente modificados (OGM), que são objeto, na União Europeia, de legislação altamente restritiva; depois, a 5 de fevereiro, haverá votação em Estrasburgo.
A proposta para diferenciar as NGT da engenharia genética convencional advém do facto de estas novas técnicas de edição genética (como o CRISPR-cas9) não incluírem transferência de genes entre diferentes espécies, mas apenas a manipulação de genes de forma a dar a uma planta características desejáveis. Na prática, é uma forma mais rápida e rigorosa de atingir os resultados que hoje se conseguem através da mutagénese (por exemplo, com o cruzamento de variedades). As mutações obtidas por NGT podem, em teoria, acontecer na natureza.
Quando se soube da proposta da Comissão Europeia, tudo parecia encaminhado para que as NGT conseguissem a diferenciação que muitos cientistas exigem. Mas há sinais fortes de que o documento venha a ser chumbado no Parlamento Europeu.
€300 mil milhões: o “custo de dizer ‘não'”
Os cientistas que assinam a carta, intitulada “Apelo urgente para não bloquear o progresso científico sobre NGT no Parlamento da UE”, realçam a necessidade de avançar com esta ferramenta, dados os desafios climáticos que enfrentamos. “O melhoramento convencional para culturas resilientes ao clima (com cruzamento de certas características, seleção subsequente e depois retrocruzamento para remover características indesejáveis) consome muito tempo. Leva anos, até décadas. Não temos esse tempo numa era de emergência climática.”
É ainda realçado o potencial da edição genética para a sustentabilidade ambiental e económica da agricultura. “As NGT ajudam a tornar as plantas agrícolas resistentes a doenças através de edições precisas e direcionadas ao seu código genético, tornando possíveis os nossos objetivos ambiciosos e vitais de redução de pesticidas, ao mesmo tempo que protegem os rendimentos dos agricultores. Não é, portanto, nenhuma surpresa que muitos dos agricultores que trabalham arduamente na Europa – incluindo um número crescente de produtores biológicos – sejam apoiantes entusiásticos das NGT.”
O projecto de lei, continua a carta, “é um passo importante tendo em vista a nossa missão de melhorar a sustentabilidade ambiental nos setores alimentar, agrícola e energético. A utilização responsável de NGT que a legislação poderia desbloquear pode contribuir significativamente para a nossa busca coletiva de um futuro mais resiliente, ambientalmente consciente e com segurança alimentar.”
Os signatários citam um relatório recente, que conclui que “a não autorização das NGT poderia custar à economia europeia €300 mil milhões anualmente em ‘benefícios perdidos’ em vários setores”. “Este é o custo de dizer ‘não’ ao progresso científico”, avisam.
“Estamos a ficar para trás”
Na missiva, são lançadas farpas aos grupos anti-OGM, encorajando os eurodeputados a ouvirem a ciência, “a envolverem-se com a esmagadora maioria dos agricultores e verdadeiros especialistas”, e não com “lobistas anticientíficos reativos na bolha de Bruxelas”. “O vosso apoio às NGT não só promoverá a inovação, mas também posicionará a UE como líder na elaboração de políticas responsáveis e baseadas em evidências em todo o mundo. Os líderes em África, por exemplo, estão a observar atentamente o que vocês decidem, tal como os cientistas africanos que têm a mandioca, a banana, o milho e outras culturas básicas resilientes às alterações climáticas, prontas para serem utilizadas.”
O texto remata com um apelo para que o Parlamento Europeu “rejeite as trevas do incitamento ao medo anticiência” e olhe antes “para a luz da prosperidade e do progresso”.
Alguns cientistas portugueses assinaram a carta, incluindo Jorge Canhoto, professor da Universidade de Coimbra, que assegura haver um “real perigo” de as NTG serem bloqueadas, com consequências desastrosas para a UE. “Outros países já estão a utilizar estas técnicas e nós estamos novamente a ficar para trás.”
O professor, também presidente do CiB – Centro de Informação de Biotecnologia, lembra que “as modificações que podemos introduzir são muito menos extensas do que por melhoramento genético convencional”, pelo que não faz sentido regulá-lo com as leis dos OGM. “O sistema é mais preciso e permite modificações que não implicam a introdução de genes de outros organismos. É um conjunto de potencialidades que não estamos a aproveitar e que é importante para assegurar a segurança alimentar e fazer face às alterações climáticas, ajudando-nos a obter plantas mais resistentes a stresses ambientais, como a falta de água, pragas e doenças. Tenho receio de que a UE venha a perder-se novamente nestes discursos que não levam a nada.”
Luís Guimarais, da WePlanet Portugal, justifica a carta aberta com a “desinformação a circular acerca de tecnologias como as NGT, especialmente nos círculos de tomada de decisões”. “É muito importante que a UE reconheça que estas técnicas devem fazer parte do leque de ferramentas a utilizar para garantir melhor segurança alimentar. A adopção da legislação pode garantir aos agricultores europeus colheitas mais resistentes a climas mais adversos, e ao consumidor alimentos mais baratos e nutritivos.”