O segundo e último dia da Clinton Global Initiative abriu com um discurso do Reverendo William Barber II. Padre negro protestante, professor na Universidade de Yale e ativista social, foi o único orador da conferência a levantar – e por mais de uma vez – uma plateia grisalha, formal e pouco dada a arrebatamentos.
Num tempo em que a linguagem vai sendo cada vez mais mutilada e comprimida no espaço público, é sempre comovente confirmar como a palavra guarda, rebelde e intacto, o seu poder mobilizador. As palavras que nos fazem levantar da cadeira em aplauso ou que simplesmente dissipam nevoeiros interiores e abrem os horizontes podem mesmo mudar o mundo.
Num dos painéis deste segundo dia, Will.i.am (fundador da banda Black Eyed Peas e da i.am/Angel Foundation), já no fim da sua intervenção, disse algo curioso: a localidade (New Hampshire) em que Obama proferiu o seu caristmático discurso “Yes, We Can” era, à data, uma pequena comunidade algo anónima e desvitalizada – porém, é hoje das mais dinâmicas da América. Qualquer coisa terá ficado, terá mudado para sempre.
Ao fim da manhã deste segundo dia, a pouco mais de uma milha de distância, Biden discursava nas Nações Unidas ao mesmo tempo que Clinton abria um painel. Biden sobre guerra e paz, Clinton sobre a nossa dificuldade em aprender com a História, acreditar na Ciência e agir em prol dos outros e do futuro. Vamos encontrando desculpas e distrações para não sairmos da nossa zona de conforto e da nossa teia de interesses imediatos. Em muitos casos, preferimos mesmo não saber, para não sentirmos o apelo ou o dever de agir.
Ao longo destes dois dias, também Guterres cumpriu com a tradição americana de boa oratória, tendo proferido dois discursos importantes, ambos desarmantes. No primeiro, na SDG Summit 2023 – a cimeira que serviu de ponto de situação sobre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas e, em particular, das 169 metas que lhes estão associadas –, deixou claro que só 15% dessas metas sociais e ambientais serão alcançáveis, até 2030, e que em algumas estamos mesmo piores do que estávamos em 2015. Já no segundo, na abertura da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, fez um retrato inquietante do mundo atual – fragmentado, mais imprevisível do que no tempo da Guerra Fria e com menos tempo para agir face a desafios importantes, porém incapaz de se mobilizar, cooperar e agir.
Darmos por adquirido o que temos é um erro. Nos mais de 500 milhões de anos de vida na Terra, houve mais tempo sem gelo no planeta do que com gelo. A temperatura média da Gronelândia já foi superior a 30 graus centígrados. Obviamente, nessas condições não seria possível haver vida humana na Terra. Já a paz, essa construção mais frágil que um pedaço de gelo ou um coral, é condição necessária para termos disponibilidade e recursos para as respostas que devemos às próximas gerações. É chocante saber que o valor investido anualmente em armas e guerras seria suficiente para pagar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, isto é, para termos sociedades coesas e um planeta saudável. Como é possível?
E como é possível aceitarmos que haja 300 milhões de pessoas com fome no mundo – o dobro de 2020 –, sabendo que a produção alimentar global é mais do que suficiente para alimentar a população mundial? Sim, é a guerra na Ucrânia, a inflação, a corrupção, as alterações climáticas e o desperdício, mas tudo causas ao nosso alcance. Como é possível 90% dos 540 mil milhões de dólares entregues anualmente em subsídios pelos governos a empresas do setor agroalimentar (mais do dobro do PIB português) prejudiquem o planeta e a nossa saúde? A dado no momento, nos corredores, ouvi alguém dizer que não acredita em Deus, mas que sabe reconhecer os problemas que só Ele poderá resolver. Não é o caso.
Tal como está ao nosso alcance contrariar o recente relatório das Nações Unidas que nos dá conta de que a igualdade de género está ainda a 300 anos de distância e que em muitas geografias está mesmo a regredir. Hillary Clinton refere-se à igualdade de género como o “unfinished business” do século XX. Não podemos aceitar que ele transite para o século XXII. Os direitos das mulheres e das raparigas são Direitos Humanos, e vice-versa. É tão simples quanto isto.
A última sessão deste segundo dia teve como convidado Michael J. Fox. Desde que foi forçado a abandonar a carreira de ator, já conseguiu levantar e entregar à ciência dois mil milhões de dólares para apoiar a investigação sobre a doença de Parkinson. Quando Hillary lhe perguntou se tem pena de não ter concretizado na plenitude essa carreira, num inglês quase incompreensível, respondeu: “Se conseguir contribuir de forma decisiva para a descoberta da cura desta doença, tocarei muito mais pessoas do que alguma vez tocaria como ator”.
Os desafios que temos diante de nós precisam de líderes com paixão, propósito e humildade. Mais empenhados em resolver problemas e em governar para o futuro, do que em soundbytes e jogos palacianos. Capazes de inspirar pelo exemplo – e pela palavra. Sim, porque as palavras também contam. Delas se faz o pensamento – e, mais tarde ou mais cedo, o que pensamos torna-se o que fazemos, e o que fazemos o que somos.
Quinze anos depois da única Clinton Global Initiative em que estive presente, guardo desta o comentário de corredor de alguém que se definia como otimista, mas um otimista que se preocupa bastante, e as palavras finais de Bill Clinton: “Life is short. Be humble. And keep going.”