A VISÃO teve acesso a um email do gabinete da Secretaria de Estado do Ambiente em que são pedidas explicações à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), devido a “preocupações” transmitidas pela “área governativa da economia”. Essas preocupações têm origem numa reunião da Associação das Empresas Portuguesas do Setor do Ambiente (AEPSA) com o secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor, João Torres (na dependência do Ministério da Economia), em que os representantes das empresas se queixaram do que consideram ser diversas irregularidades que, dizem, estão a manchar o setor da reciclagem em Portugal.
Entre as várias queixas apresentadas pela AEPSA, que levou a Secretaria de Estado a contactar a sua congénere do Ambiente, estão concursos da Electrão para reciclagem de material validados por uma engenheira do ambiente com alegados conflitos de interesses. Num dos concursos, para tratamento de “equipamento de grandes e pequenas dimensões” e “equipamento informático e de telecomunicações”, duas das três empresas (em 19 concorrentes) que foram selecionadas para a fase final – incluindo a empresa que viria a ganhar o concurso, a Reci Qwerty – haviam sido certificadas pela mesma profissional que presidiu ao concurso. Noutro, para reciclagem de “laptops” e “computadores completos e incompletos”, venceu a Renascimento (que foi entretanto integrada na multinacional Veolia), a outra empresa certificada pela mesma engenheira do ambiente.
A justificação para a incompatibilidade decorre do facto de serem empresas que recorreram aos serviços de uma pessoa para ver aprovadas as suas licenças de gestão de resíduos e que depois participaram num concurso decidido pela mesma pessoa. Na declaração de interesses, quem valida o concurso tem de declarar que não possui “qualquer interesse, direto ou indireto, nas entidades candidatas” nem é sua “dependente financeira ou profissionalmente”.
Este suposto conflito de interesses foi uma das questões levantadas pelo gabinete do secretário de Estado da Defesa do Consumidor ao do Ambiente e daí transmitidas para a APA. “A AEPSA”, lê-se no email, “nota que num dos concursos a Electrão recorre a uma das entidades independentes disponível do site da APA que certifica OGR [operadores de gestão de resíduos] sendo que ‘há uma personalidade dessa entidade que faz acreditação e que é, ao mesmo tempo, a pessoa que preside aos concursos’, concluindo a AEPSA que não se assegura independência prevista nos critérios exigidos nos concursos para o tratamento de REEE [resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos], recentemente publicados.”
“Gera a suspeição”
A Electrão não vê aqui qualquer conflito de interesses. “Não, não há qualquer incompatibilidade nem percebermos porque se coloca e personaliza essa questão”, diz à VISÃO Pedro Nazareth, diretor-geral da maior entidade gestora de resíduos elétricos em Portugal. “Por um lado, temos uma auditoria a recicladores, que certifica internacionalmente o seu desempenho ambiental. Por outro, uma validação administrativa de terceira parte de um procedimento de selecção de recicladores. No primeiro, garante-se que os recicladores têm condições para reciclar, no segundo, que um procedimento de escolha de recicladores cumpriu as regras estabelecidas.”
Rui Berkemeier, especialista em resíduos da associação Zero, não concorda. “No mínimo, do ponto de vista ético, não é recomendável [o concurso ser validado pela mesma pessoa que certifica empresas concorrentes]. Gera a suspeição.”
O pedido de esclarecimentos da Secretaria de Estado da Defesa do Consumidor, e depois transmitido à APA, não se fica por aqui. Outra questão levantada é a acusação de que a empresa espanhola vencedora do último concurso da Electrão para tratar de frigoríficos e arcas congeladoras (um contrato que vale mais de €350 mil) não consegue provar que efetivamente elimina as frações perigosas dos equipamentos. Essa empresa, a Recilec, está a ser indiciada por fraude e crimes ambientais, precisamente por, durante anos, ter triturado equipamentos e vendido o material para sucatas, em vez de os tratar, como manda a lei e para o que tinham sido pagas. Além da burla no valor de milhões de euros, foram libertadas para a atmosfera grandes quantidades de gases fluorados, 23 mil vezes mais potentes do que o dióxido de carbono, no efeito de estufa.
Finalmente, o email pede resposta ao pedido da AEPSA para que quatro concursos sejam cancelados, uma vez que as quantidades de resíduos a reciclar ficam abaixo ao que está previsto na lei (não permitem, portanto, cumprir as metas a que a entidade gestora está obrigada, de acordo com a licença que lhe foi atribuída pelo Estado). As entidades gestoras têm ficado muito aquém dos objetivos a que estão obrigados: em 2020, quando deviam ter tratado 65% dos resíduos, ficaram-se pelos 15%.