Thor é um homem barbudo, de aparência rude, mastodôntico, que conduz o seu miniautocarro com a compreensível dificuldade de quem não consegue desencostar o estômago do volante. Nasceu há 42 anos, numa pequena vila do Norte da Noruega, 60 quilómetros a sul do círculo polar, e aí cresceu, na fria e áspera floresta escandinava. Não era fria que chegasse. Em 1991, passou uma semana em Longyearbyen, no arquipélago norueguês de Svalbard, no coração do Árctico, e apaixonou-se pela cidade mais setentrional do mundo. Passaram-se dez anos até Thor Erik Olsen concretizar o modesto e insuspeito sonho que nasceu nessa altura: ser motorista, a dois passos do Pólo Norte, numa das mais inóspitas regiões da Terra, para transportar turistas e, sobretudo, cientistas professores da universidade local e investigadores do aquecimento global.
Ao fim de tantos anos a privar com alguns dos maiores especialistas na mais perigosa ameaça ambiental da história da Humanidade, o pançudo norueguês transformou-se num barril de informação sobre o tema. “Já ouvi todo o tipo de explicações”, garante, com uma voz surpreendentemente suave. “Se falar com cinco cientistas, recebe cinco respostas diferentes. Um até me disse que as mudanças mais rápidas no Árctico se devem ao tsunami de 2004, que empurrou água quente para a corrente marítima que passa aqui. Não sei se é verdade ou mentira, mas uma coisa é certa: o clima está mesmo a mudar. Nisso, todos concordam.” No arquipélago com mais ursos polares do que gente (por enquanto…) não é preciso ser-se cientista ou estudar números e gráficos para se perceber que nada está igual.
Basta abrir os olhos. “Há três invernos que o fiorde de Longyearbyen não gela”, diz Thor, a apontar com o queixo para as águas lisas como um espelho, neste início de Setembro, em frente da colorida cidade. “É mau para os ursos polares, que precisam de placas de gelo para caçar.” Neste momento, a espécie estrebucha para sobreviver. Uma das causas mais comuns de morte é o afogamento os blocos de gelo usados como plataformas de caça são cada vez mais raros e os animais vêem-se obrigados a nadar distâncias enormes. A exaustão faz o resto. Os maiores carnívoros terrestres podem vir a ser as primeiras vítimas directas das alterações climáticas. Não serão as últimas.
SETE METROS DE ÁGUA
Os olhos do mundo estão apontados ao Árctico. A região é um barómetro do aquecimento e o local onde as alterações são mais drásticas. Nas últimas décadas, a temperatura média em redor do Pólo Norte aumentou 4°C, um ritmo duas vezes superior à média mundial. Só para se ter uma ideia, o mais pessimista dos cenários científicos aponta para um aumento de 6,4°C da temperatura global até ao fim do século XXI.
O efeito imediato do aquecimento é o degelo no círculo polar. No final de Agosto, as duas passagens à volta do pólo ficaram desimpedidas pela primeira vez na História documentada. O atalho significa uma grande poupança de tempo e combustível para os navios comerciais, mas este não deixa de ser o único ponto positivo, numa imensidão de consequências negativas. A mais óbvia nem sequer passa pelo aumento do nível médio das águas do mar, uma vez que o gelo já se encontra a flutuar. O problema é a bola de neve desencadeada: o gelo reflecte os raios de Sol; se há menos gelo, mais luz atinge o oceano, que absorve o calor; e se o calor aumenta, mais depressa o gelo derrete.
Aí começa a segunda parte do guião. A parte assustadora. Quando já não houver gelo marítimo para reflectir o Sol e as temperaturas escalarem a sério, os mantos brancos da Gronelândia começarão a derreter de forma imparável. E 80% da maior ilha do mundo (quatro vezes o tamanho da Península Ibérica) estão cobertos de gelo que – este, sim – influenciará o nível do mar. De que maneira: se tudo derreter, as águas dos oceanos levantar-se-ão sete metros. Mais de dois andares de altura. Será uma catástrofe planetária. Hoje, praticamente 70% da população vive a menos de cem quilómetros da costa. Em 2050, deverá ultrapassar os 90 por cento.
UMA QUESTÃO DE ÉTICA
A consciência é tramada. O Governo da Noruega um dos maiores produtores mundiais de petróleo e, logo, um dos principais responsáveis pela emissão de gases com efeito de estufa tem investido milhões de coroas em medidas de compensação. Mas o arquipélago de Svalbard apresenta ainda a curiosa característica de segurar a espada pelo gume: as ilhas encontram-se na região do planeta que mais depressa muda por causa do aquecimento e são também um importante exportador de carvão, um combustível fóssil com grande peso nas emissões mundiais as suas minas constituem, aliás, o maior empregador da zona. Para se ter uma ideia, recorde-se que a China inaugura, por semana, uma nova central a carvão com a mesma capacidade de produção de electricidade que todas as barragens planeadas para Portugal até 2013. Juntas.
Tocam os sinos na cidade de Longyearbyen. Uma mulher sai de casa, com um grande saco na mão e uma espingarda ao ombro a lei obriga toda a gente a andar armada, uma prevenção contra o risco de se ser atacado por um urso-polar. Um homem encaminha-se, em passos lentos, para a singela igreja da povoação. É um pastor luterano da Noruega continental, mas não está aqui para a missa: vai participar numa reunião sobre ética climática com responsáveis das minas locais. “Acredito que Deus criou o mundo e nos deixou a responsabilidade de tratarmos dele”, diz Domprost Holck, 65 anos, deão da catedral de Hamar, no centro da Noruega. “Só que nós continuamos a destruir o planeta e, com ele, as nossas vidas. As pessoas dizem que a atenção deve estar virada para as economias emergentes, como a China e a Índia, que não fazem parte do Protocolo de Quioto e estão a emitir cada vez mais gases com efeito de estufa. Mas os países ocidentais têm de dar o exemplo. Fomos nós que passámos as últimas centenas de anos a poluir e a enriquecer com isso.”
A população de Svalbard pretende ser a primeira comunidade com emissões zero. Se tudo correr bem, em 2025 estará pronto um sistema de sequestro e armazenamento de dióxido de carbono, aproveitando as minas abandonadas. O fumo das centrais produtoras de energia passa, na prática, a ser injectado no solo, uma das soluções consideradas mais promissoras pela União Europeia e pelos EUA para resolver o problema das emissões. Mas o processo só funciona em certas zonas, com formações rochosas ideais para manter o carbono preso. E é caríssimo Quando a tecnologia estiver devidamente aprumada, poderá ser tarde de mais.
A EXTINÇÃO DOS INUITS
Narsarsuaq, um entreposto aéreo do Sul da Gronelândia com poucas centenas de habitantes. Meados de Junho. Estão mais de 20ºC e enxames de impiedosos mosquitos atacam os três inuits sentados num banco de madeira, à porta do único hotel da povoação. Um deles, ansioso por meter conversa, atira um inesperado “Eh pá!”. Com um pouco de inglês e muitos gestos, o inuit, baixo, magro e de pele escura, levanta-se e conta que trabalhou há anos com pescadores portugueses, na apanha do bacalhau, e que se habituou a ouvir a expressão tão lusitana. O “eh pá!” serve para tudo, explica, usando diferentes tons de voz e a linguagem corporal: chamar alguém, cumprimentar efusivamente, mostrar desagrado ou incredulidade. Enquanto fala, o antigo pescador tenta afastar os mosquitos com um constante abanar de braços à frente da cara gretada pelo contraste do sol forte do curto Verão com o frio do longo Inverno.
Ao fim de milhares de anos a sobreviver no ambiente mais hostil do planeta, a cultura e a vida dos inuits está finalmente em risco. O aquecimento global tem trocado as voltas a caçadores e pescadores tradicionais. O gelo torna-se agora instável durante maiores períodos de tempo, dificultando as viagens em trenó. No mar, icebergues grandes como montanhas desabam sem aviso, provocando mini-tsunamis que podem afundar barcos. As baleias e as focas migram ainda mais para norte.
“Os hábitos das espécies que constituem a base da alimentação dos inuits estão a mudar demasiado depressa para a população se conseguir adaptar”, assegura Francesc Bailón, 40 anos, um antropólogo de Barcelona que estuda a cultura dos gronelandeses há seis anos. O investigador visitou a Gronelândia (uma região autónoma da Dinamarca) em Junho, quando os fiordes se encontravam pejados de icebergues moribundos. Ao regressar, dois meses mais tarde, já não os encontrou. “Não é normal. As águas estavam limpas. E em Agosto já era costume o tempo começar a arrefecer.” Até no Norte da ilha se notam os efeitos do aquecimento. Nos últimos dez anos, alguns dos glaciares setentrionais recuaram dois quilómetros.
A IDADE DO GELO IBÉRICA
Cinquenta quilómetros a oeste de Narsarsuaq fica a povoação de Narsaq. O churrasco junto ao supermercado da vila não parece ser afectado pela presença irritante dos mosquitos (um recente estudo dinamarquês revela que os insectos eclodem um mês mais cedo do que era habitual). Mas a temperatura gera descontentamento. “Cada ano que passa está mais calor. É difícil caminhar com este sol”, queixa-se o estudante Henning Jensen, 25 anos. “Não sei como é que vocês conseguem viver lá em baixo, no Sul da Europa.” Ironicamente, o tempo quente na Grande Ilha talvez ajude a arrefecer Portugal. Alguns cientistas prevêem que o degelo, ao lançar para o mar milhões de toneladas de água fria, possa interromper a corrente do Golfo (que passa perto da Gronelândia), responsável pelo clima ameno do Velho Continente, e empurrar-nos de volta para uma Idade do Gelo. Esta ideia serviu de base a O Dia Depois de Amanhã, um filme-catástrofe com as alterações climáticas como mau da fita.
Arnarnguaq Petersen não precisa de esperar pelo dia seguinte as coisas estão a acontecer hoje. “Os animais fogem daqui, quase não chove, os verões estão quentes como nunca estiveram”, lamenta a empregada do supermercado, de 27 anos. “E acha que este calor, em Junho, é normal?” Talvez não, mas quando se trata de um fenómeno tão oscilante como o clima nunca é de mais confirmar as anomalias através de dados científicos. “Na Primavera e no Verão, as temperaturas em algumas partes da Gronelândia têm subido, nas últimas décadas, a uma velocidade dez vezes superior à de outras regiões do planeta”, diz Ernesto Rodriguez Camino, director do departamento de Avaliação e Modelagem do Clima, do Instituto de Meteorologia espanhol. “A certeza de que o aquecimento global existe não vem da observação de picos de temperatura episódicos parte de informações que mostram a evolução durante muitos anos.”
METANO: A BOMBA-RELÓGIO
Longyearbyen, arquipélago de Svalbard. O motorista Thor Erik Olsen lê o jornal regional sentado no lugar do condutor do seu miniautocarro, enquanto espera pela pequena expedição que, a poucos metros daqui, faz medições na tundra árctica. A terra castanha, completamente despida, estende-se até se perder de vista, entre as montanhas que dominam o horizonte. Custa a acreditar que debaixo desta paisagem plácida descansa uma bomba-relógio.
Só agora os cientistas começam a estudar a fundo o permafrost, a camada de solo gelado nas regiões frias. E o que têm descoberto não descansa a humanidade. Uma investigação da Universidade do Alasca calcula que as terras daquele estado americano e do Canadá armazenem 136 mil milhões de toneladas de gases com efeito de estufa (metano, na sua maior parte, um gás 20 vezes mais potente do que o dióxido de carbono). O número corresponde a um quinto do total existente na atmosfera. Se o permafrost derreter, o metano da vegetação morta solta-se, com efeitos apocalípticos. E ainda não estão contabilizadas as milhares de milhões de toneladas presas na Gronelândia e na Sibéria. Esta vasta região russa tem mesmo visto algumas das suas tundras transformarem-se em pântanos. Nos últimos tempos, edifícios construídos sobre terra gelada há milhares de anos desabaram, quando os solos se tornaram menos sólidos.
Os cenários previstos pelo IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, das Nações Unidas) não levam em conta os efeitos do permafrost. Outros estudos, no entanto, apontam para que um aumento de dois a três graus centígrados de temperatura seja suficiente para transformar as tundras em produtoras industriais de carbono. É esse o ponto de não retorno. Uma vez em andamento, será mais fácil parar um comboio com a força dos braços do que inverter a situação. Com os oceanos passa-se o mesmo. Ainda que o Homem parasse de poluir neste exacto segundo, se todas as fábricas fechassem e os carros deixassem de funcionar, as águas continuariam a subir durante mais um século. Thor dobra o jornal e vira-se com a rapidez que o seu pesado corpo deixa. “Ainda há quem diga que o melhor é esperar para ver”, lamenta, num inglês tão límpido como as águas do fiorde. “Mas esperar pelo quê? O que eles dizem que aí vem já chegou.”
______________________________
Disputa: A nova guerra-fria
O aquecimento do Árctico está a tornar-se apetitoso. Rússia, EUA, Canadá, Dinamarca e Noruega têm tentado provar os seus direitos sobre a região, agora que, com o degelo e o aumento das temperaturas, os seus recursos naturais podem ficar disponíveis sobretudo petróleo e gás. No ano passado, a Rússia enviou dois batiscafos ao Pólo para colocarem uma bandeira no fundo do mar. A Gronelândia organizou, na última terça-feira, 25, um referendo para ampliar a sua autonomia, um passo que não é alheio à independência económica proporcionada pelos hidrocarbonetos. Até a União Europeia anunciou uma estratégia para ajudar os estados do Árctico a equilibrar os problemas do aquecimento com “a necessidade de utilizar (…) os recursos naturais”, nas palavras da comissária para as Relações Externas, Benita Ferrero-Waldner. A nova guerra-fria ainda está no princípio.
_____________________________
Maldivas Mais vale prevenir…
A primeira medida do primeiro Presidente das Maldivas democraticamente eleito não passou por um plano anti crise. Na semana em que tomou posse, no início do mês, Mohamed Nasheed anunciou um fundo destinado a comprar terras para os seus 386 mil conterrâneos. É que as ilhas do Índico correm o risco de desaparecer, por causa do aumento do nível do mar. “Trata-se uma medida de segurança para o pior cenário possível”, disse o Presidente ao jornal britânico The Guardian. Além das Maldivas, também o Bangladesh, a Papua Nova Guiné e as Fiji estão ameaçados. Vanuatu e Tuvalu, no Pacífico, assinaram um protocolo com a Austrália de acolhimento aos seus refugiados climáticos.