“Afastar-se dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica, de modo a alcançar emissões líquidas zero até 2050, de acordo com a ciência.” Esta é a frase que tem levado muita gente a elogiar o texto do “Primeiro balanço global” aprovado pelos delegados na 28ª conferência do clima das Nações Unidas, no Dubai.
Não é a “eliminação gradual” que cientistas, ambientalistas e alguns países pediam, mas a mera referência a um afastamento dos combustíveis fósseis é considerado um sucesso, tendo em conta que nunca um documento final das COP mencionou sequer um caminho nessa direção – o que não deixa de ser notável, tendo em conta que a queima de carvão, petróleo e gás representa 90% das emissões de dióxido de carbono. O mais perto que se esteve desse ponto foi na COP26, em Glasgow, quando se referiu à “redução gradual do (…) carvão” e ao fim dos subsídios “ineficientes” para combustíveis fósseis”.
Desta vez, parece haver uma direção definida, apesar de terem sido evitadas as expressões “eliminação gradual” ou mesmo “redução gradual”, exigência mínima de representantes dos países que defendem maior ambição climática. A oposição de Estados produtores de petróleo, encabeçados pela Arábia Saudita, impediu linguagem mais definitiva (o documento final tem de ser aprovado por consenso dos 198 países presentes). A OPEC pedira igualmente aos seus países-membros para recusarem qualquer acordo que “alvejasse” os combustíveis fósseis.
Mas há pormenores que enfraquecem este “feito histórico e sem precedentes”, como lhe chamou o presidente da COP28 (e da maior petrolífera dos Emirados Árabes Unidos, a ADNOC), o sultão Ahmed al-Jaber. Um deles é o facto de o “Afastar-se dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos” ser apenas uma de oito opções, que podem ser escolhidas tendo em conta as características de cada Estado.
No início desse artigo, o 28º, a Conferência “insta as Partes a contribuírem para os seguintes esforços globais, de uma forma determinada a nível nacional, tendo em conta o Acordo de Paris e as suas diferentes circunstâncias, caminhos e abordagens nacionais”, dando depois os caminhos possíveis. O dos combustíveis fósseis é o quarto. Os primeiros três da lista são “triplicar a capacidade de energia renovável global e duplicar a taxa média anual global de melhorias na eficiência energética”; “acelerar os esforços para a redução progressiva da energia a carvão”; “acelerar os esforços a nível mundial no sentido de sistemas energéticos com emissões líquidas zero, utilizando combustíveis com zero ou baixo teor de carbono muito antes ou por volta de meados do século”.
Os outros quatro são “acelerar tecnologias com zero ou baixas emissões, incluindo, entre outras, energias renováveis, energia nuclear, tecnologias de redução e remoção, tais como captura, utilização e armazenamento de carbono, especialmente em setores difíceis de reduzir, e produção de hidrogénio com baixo teor de carbono”; “acelerar e reduzir substancialmente as emissões que não sejam de dióxido de carbono a nível mundial, incluindo, em particular, as emissões de metano até 2030”; “acelerar a redução das emissões do transporte rodoviário através de uma série de vias, nomeadamente o desenvolvimento de infra-estruturas e da rápida implantação de veículos com zero ou baixas emissões”; “eliminação gradual dos subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis que não abordam a pobreza energética”.
O texto final é, apesar das escapatórias que permitem a sobrevivência dos combustíveis fósseis durante muitos anos, um importante avanço face ao rascunho original, apresentado na quarta-feira, que deixou à beira de um ataque de nervos os delegados de países da União Europeia e dos mais afetados pelas alterações climáticas. Parece ter havido, aliás, uma estratégia diametralmente oposta à que foi adotada, por exemplo, na COP de Glasgow, em 2021: em vez de apresentar um texto ambicioso, que foi esbarrando, depois, nas intransigências de países que querem continuar a vender e a queimar petróleo e carvão, obrigando a sucessivas reformulações que enfraqueceram o documento, a presidência da COP28 optou por apresentar um rascunho tão mau que quaisquer migalhas do texto final ficassem a parecer o manjar dos deuses.
Mesmo assim, houve também recuos face à proposta original desse rascunho, violentamente criticado por figuras de proa da ação climática, como Al Gore (que disse que o texto parecia ter sido ditado “palavra por palavra” pela OPEC). Um dos mais significativos é que, ao passo que o primeiro “reconhecia” que limitar o aquecimento global a 1,5º C exigia um pico de emissões até 2025 e uma redução de 43% até 2030, o documento final acrescenta uma “nota” que, na prática, volta a dar espaço de manobra aos países para evitarem comprometer-se: “Isto não implica atingir o pico em todos os países dentro deste período de tempo, e os prazos para o pico podem ser moldados pelo desenvolvimento sustentável, pelas necessidades de erradicação da pobreza e pela equidade e o estar em conformidade com as diferentes circunstâncias nacionais”; e reconhece-se que “o desenvolvimento e a transferência de tecnologia em termos voluntários e mutuamente acordados, bem como o reforço de capacidades e o financiamento, podem apoiar os países neste sentido”.
Há ainda um artigo que “Reconhece que os combustíveis de transição podem desempenhar um papel na facilitação da transição energética, garantindo ao mesmo tempo a segurança energética”, numa referência óbvia ao gás – um combustível que, apesar de causar menos emissões do que o carvão e o petróleo, pode atrasar a transição energética para fontes mais limpas.
Finalmente, o sequestro e armazenamento de carbono (CCS, na sigla internacional) é apontado como solução para reduzir o impacto dos combustíveis fósseis, embora seja uma tecnologia ainda por provar a grande escala.
Os buracos no documento levaram Bill Hare, cientista da Climate Analytics, a apelidá-lo de “uma grande vitória para os países produtores de petróleo e gás e para os exportadores de combustíveis fósseis”. Por outro lado, não impediram Wopke Hoekstra, o chefe da delegação climática da UE, de agradecer ao presidente da COP28 “pela sua liderança, pela sua visão e tremenda tenacidade”.
A verdade é que poucos esperavam fumo branco já esta quarta-feira. A cimeira deveria ter terminado na terça de manhã, mas, depois do caos instalado com a publicação de um rascunho considerado completamente inaceitável pela maioria, contava-se que as negociações se prolongassem até ao final da semana. Mas al-Jaber insistiu que queria um compromisso assinado, no máximo, até quinta, porque, segundo a BBC, tinha férias marcadas.