À partida, já sabíamos que os 40 minutos desta conversa nunca seriam suficientes para fazer total justiça ao tema proposto: O Que a Vida me Ensinou. No palco do VISÃO Fest, com moderação da jornalista Clara Soares, estavam a escritora Lídia Jorge, nascida em 1946 em Boliqueime, e o jornalista José Carlos de Vasconcelos, que nasceu em Freamunde há 82 anos. Duas vidas bem cheias. Por coincidência, na edição do Jornal de Letras, Artes e ideias (JL) – de que José Carlos de Vasconcelos é diretor desde a fundação, em 1981 – que agora está nas bancas, o tema de capa é uma entrevista a Lídia Jorge, a propósito do seu novo livro, Misericórdia.
O tema obrigava a balanços, olhar para o passado para perspetivar o futuro. E os tempos não estão para grandes otimismos…
Lídia Jorge começou por sublinhar que toda uma tradição de pensamento que vem desde o início do século XX apresenta um grande “individualismo” e o “primado da busca do prazer” como princípios que norteiam as nossas vidas, “como se não pudesse existir um altruísmo puro.”
Mesmo que aparentemente, nas redes sociais, um certo sentido de união pareça estar presente em grande indignações comuns, Lídia Jorge vê como elas valorizam “movimentos que instigam a instintos primários de luta e defesa.” Ou seja: “O impulso gregário de lutar por um bem comum está muito esbatido.” O que fazer? A resposta estará sempre na necessária atenção ao “outro”: “Estar com os outros tem uma importância enorme; pensando em [Albert] Camus, mesmo que Deus não exista, estamos sempre uns com os outros, isso não muda, não somos seres isolados…”.
“Gosto de pensar que sou lírico mas não sou imbecil”
José Carlos de Vasconcelos
Quando chega a vez de José Carlos de Vasconcelos partilhar com o público os ensinamentos da sua vida (a primeira pergunta ia nesse sentido), o diretor do JL começa por fazer um aviso: “Eu não teorizo muito, quase não penso sobre as coisas.” E lembra Saramago quando este dizia que era escritor porque não conseguia ser “historiador ou ensaísta.” Afirma-se, claro, como jornalista, advogado, “se calhar poeta”, mas não deixa de ser uma pessoa que, sobretudo, valoriza “o instante”, “viver cada instante com a maior intensidade possível.” E para melhor se explicar, José Carlos recita, de cor, um poema seu (com que arrancou uma salva de palmas ao auditório do Planetário):
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2022/10/221023_thumbnail_MB-JCVasconcelos-LidiaJorge-02.jpg)
“Dia a dia me consumo,
dia a dia me desgasto,
minha vida é fogo posto.
E o que nem fica de fumo,
o que nem fica de rasto
– esse é o meu rosto.”
Certo é que não é novidade para ninguém o envolvimento social e político, em nome de causas (com a “liberdade” e a “justiça” como farol) do histórico diretor do JL. “Gosto de pensar que sou lírico mas não sou imbecil”, brinca, e recorda, até, que chegou a fundar um partido, o PRD [em 1985], com o grande objetivo de “dar ética e decência à vida política”, além de recuar ao seu envolvimento, a partir de Coimbra, nas lutas dos estudantes contra o Estado Novo.
A eterna luta
Mas será possível passar grandes ensinamentos, a partir das nossas experiências e aprendizagens, às novas gerações? Lídia Jorge está cética quanto a isso. E fala-nos de um ex-combatente da guerra civil espanhola que conheceu e lhe alimentou esse ceticismo: “Ele sentia que a sua experiência era intransmissível… Cada geração tem sempre que iniciar os seus próprios processos, parece que têm de ser privados de alguma coisa para lutarem pelo seu caminho.”
Afinal, a “lei natural do esquecimento tem lados positivos e negativos…”. Hoje vivemos um momento especialmente sensível para abordar essa questão. A escritora recorda que, tanto ela como José Carlos de Vasconcelos, da “geração do baby boom, do pós-Guerra”, cresceram a acreditar que a humanidade estava “vacinada” quanto ao regresso de um grande conflito mundial, “pelas leituras que tivemos, filmes e reportagens que vimos, a memória do Holocausto…”. Mas, diz, “dramaticamente não é assim.”
A atual guerra na Ucrânia, que ameaça tornar-se (ainda mais) global é o pano de fundo para estas duras reflexões. “Desde 24 de fevereiro [data do início da invasão russa na Ucrânia] vivemos em estado de choque, no horizonte pode estar a possibilidade de, um dia, se dizimar a humanidade inteira.”
E não haverá saída? Essa incapacidade de passar experiências de geração em geração pode ser compensada por uma nota de esperança: a aposta na “educação”, ensinar “o respeito pelo que está ao lado, a ideia de que o ‘outro’ é um ‘eu’ e temos de o respeitar.” E recorda o seu passado como professora, empenhada em “reverter o instinto sanguinário.” Será suficiente? Não ficamos inteiramente convencidos disso, ainda sugestionados, talvez, pela ideia expressa por Lídia Jorge quanto a uma velha “tentação para o suicídio” da humanidade…
José Carlos de Vasconcelos vê nas novas gerações “um certo comodismo, uma acomodação” que não lhe agrada. “Pode ser fruto das circunstâncias”, concede, “hoje pode ser pior o medo de perder o emprego do que o risco real que nós tínhamos [nas lutas estudantis] de sermos torturados ou irmos parar à prisão.” E reflete na aparente contradição de ter “saudades” de momentos “duros e de certa forma infelizes”, como esses vividos sob a opressão do Estado Novo.
Partilhando a ideia de que dar conselhos às novas gerações pode não ser muito eficaz, José Carlos fala da importância de “dar o exemplo” (“Mas sempre detestei pôr-me em bicos de pés”, acrescenta). E que exemplo é esse? O jornalista-advogado – “se calhar poeta” – não hesita nas palavras: “É preciso lutar, resistir, combater por aquilo em que acreditamos, pelo futuro.”
Também Lídia Jorge tem, afinal, conselhos a dar aos mais jovens, dizendo que despreza aqueles que na juventude vivem só em função de “acautelar o futuro todo, talvez até a pensar já na reforma”: “O mais importante não é a longevidade mas a intensidade da vida. Somos seres de risco, de combates por causas que vão além de nós próprios.”
Em tempos sombrios, nada mau, finalmente, como mensagem para o futuro, lembrando que há uma urgência que só pode ser vivida no presente.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2022/10/221021_banner-fest-fim-de-noticia-1600x505.png)