O verão ameaça acabar nos próximos dias, mas ainda estarão frescas na memória de alguns as jantaradas ao ar livre, com os excessos típicos da estação mais hedonista do ano: iguarias calóricas, salgadas e doces, a pousarem na mesa, os copos a encherem-se de vinho, sangria ou cerveja.
Depois dos pecados, dá-se a picada da semana de Ozempic, o antidiabético que entrou para o mercado em 2018, mesmo que tipicamente não haja, nestes jantares, pessoas a lidar com os humores da insulina ou com as questões da obesidade – assim se controlam os danos colaterais no peso e fica-se bem melhor no areal.
Dito desta forma caricatural, parece tudo mesmo fácil e quase milagroso. A culpa é do semaglutido, o princípio ativo que mimetiza os recetores da molécula GLP-1, e das estrelas de Hollywood que, desde antes do verão de 2022, enchem as redes sociais com loas a este medicamento revolucionário, nascido para tratar a diabetes tipo 2, mas por elas usado para compor o corpinho de revista.
Rapidamente se percebeu que, ao atuar no sistema nervoso central, e também diretamente no tubo digestivo interferindo na velocidade do esvaziamento do estômago, promove perdas de peso – algures entre 5% e 20% dos quilos acumulados – superiores a outros medicamentos antes estudados e receitados para tentar controlar a obesidade.
Poucos terão imaginado as repercussões deste efeito colateral do semaglutido e dos seus “primos” entretanto aparecidos. De tal forma, que se estima que o mercado deste tipo de drogas irá valer 140 mil milhões de euros em 2031, perto do valor atual dos medicamentos que combatem o cancro.
Por cá, as caixas de Ozempic – de quatro doses que dão para 15 dias ou um mês consoante a indicação médica – custam 120 euros. Desde março de 2021 que o Estado comparticipa este medicamento em 90% para diabéticos (ou para quem conseguir que o médico assim o prescreva).
Resultado: em 2022, este remédio representou o maior aumento de despesa, com um encargo superior a 27 milhões de euros. Não admira que, segundo dados do Infarmed, de 2021 para 2022 as vendas tenham passado de 61 987 unidades para 245 588 (e no primeiro semestre de 2023 já iam em 148 632).
“A nível nacional acresce que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) paga para uma quantidade específica de doentes, que neste caso são os diabéticos. É por isso que, por vezes, falta para a indicação, deixando os diabéticos a descoberto. Há outros medicamentos similares para controlar a insulina, mas com esses não se perdem tantos quilos”, explica Hélder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos. Note-se que a perda de peso é extremamente benéfica para os doentes diabéticos.
Como para os doentes obesos. Até para prevenir doenças como a diabetes. É uma pescadinha de rabo na boca. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, as autoridades de saúde aprovaram já o semaglutido para a perda de peso. Esse medicamento chama-se Wegovy e pertence à mesma farmacêutica que criou o Ozempic, a dinamarquesa Novo Nordisk.
O Wegovy tem exatamente o mesmo princípio ativo, só que disponível em doses superiores mais adaptadas à perda de peso (2,4 mg por toma). Está aprovado pela EMA (autoridade europeia para o medicamento), mas ainda não chegou a Portugal. Nem se sabe se, quando for finalmente comercializado por cá, será comparticipado pelo Estado.
O fim dos vícios?
“Tirando a questão da comparticipação e da disponibilidade, estamos todos de acordo: estes fármacos são muitíssimo eficazes e seguros no tratamento da obesidade. Além do mais, são protetores do ponto de vista cardiovascular”, assevera João Jácome de Castro, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo. “Tratar a obesidade ainda não é bem aceite, ao contrário de outras doenças. No entanto, é rentável, um bom investimento, mas sem retorno imediato.”
Quando o semaglutido foi aprovado, no Reino Unido, para ajudar a perder peso, Giles Yeo, professor de Neuroendocrinologia Molecular e diretor científico do Departamento de Genómica da Universidade de Cambridge, foi contactado por jornalistas que lhe perguntaram se era moral tratar a doença com este fármaco. “Mas ninguém me perguntou se é moral tratar o cancro ou dar insulina para controlar a diabetes de tipo 1! Como estamos a lidar com o peso corporal, as pessoas pensam que se trata de uma escolha.” E acrescenta, esclarecedor: “Esta droga faz-nos sentir saciados e comer menos, não faz com que possamos comer tudo o que quisermos, nas quantidades que quisermos.”
É exatamente assim que Marta Lino, 38 anos, gestora de marketing, descreve o que sentiu logo que iniciou o tratamento com Ozempic, quando os seus diabetes – que surgiram na sequência de uma doença rara (Cushing) e de dois tumores, na hipófise e no pulmão – estavam altos e o peso tinha de ser controlado (chegou a pesar 80 quilos, sendo que mede 1,56 m): “Fica uma sensação de… não me apetecer comer muito. Normalmente, numa dieta, estou sempre a pensar em comida. Este medicamento ajuda-me imenso porque não tenho sequer vontade de cozinhar – eu que adoro cozinhar!”
Parece ser um “efeito secundário” este de deixar de pensar em comida. Além disso, do que ninguém estava à espera é que alguns doentes a tomarem semaglutido para perda de peso viessem relatar que perderam, além do apetite, a vontade de fumar, de beber álcool e até de roer as unhas. Estas “queixas”, chamemos-lhes assim, estão a ser aprofundadas pela comunidade científica.
Na verdade, já se andava a investigar, em animais, se este tipo de drogas poderia inibir as dependências mais comuns. Com resultados promissores. A hipótese em estudo é que se o semaglutido consegue acabar com o desejo de comer, poderá aniquilar muito mais.
Ainda sem conclusões, pensa-se que há um efeito direto dos agonistas do GLP-1 no sistema de recompensa do cérebro, muito provavelmente fazendo diminuir a produção de dopamina após o consumo de produtos ou substâncias com potencial de causar dependência. Do Brasil chegam mesmo relatos de quem deixou de comer chocolate, controlando comportamentos impulsivos relacionados com ansiedade e stresse. Tudo muito saudável e, ao mesmo tempo, apetece perguntar: é o fim do prazer?