A estátua de Eusébio reproduz, no Estádio da Luz, a sua posição de remate. Em fotografias com «movimento», aparece, frequentemente, todo no ar, depois de desferir o pontapé fatal, de corpo arqueado, quase a beijar o joelho da perna com que acabou de chutar. Mas a sua imagem mais iconográfica não é um remate, nem um domínio de bola, nem o festejo de um golo. Nessa imagem, ele mais parece um guarda-redes: Eusébio está em posição felina, meio encoberto pelas redes de uma baliza e inicia um passo de corrida com uma bola… debaixo do braço esquerdo.
Estamos a 23 de julho de 1966 e Portugal perde com a Coreia do Norte, por 3-1. O avançado não festeja o primeiro dos quatro golos que com que há de virar o resultado. Está com pressa. O tempo urge e é preciso ganhar.
Pouca gente sabe que aquela imagem nada tem de extraordinário. Que Eusébio sempre fez aquilo, mesmo a jogar a feijões. Já o fazia em jogos sem cronómetro, de muda aos três, acaba aos seis, no seu bairro de Mafalala, em Lourenço Marques, Moçambique, quando iniciava, de pé descalço, os primeiros toques com a «trapeira». Quanto mais num jogo com o tempo a contar! «Nunca festejei golos quando não estava a ganhar», dizia Eusébio. «Nem é preciso que o treinador dê quaisquer instruções. Marcámos golo, mas precisamos de marcar mais para vencer. A bola tem de ir ao centro de imediato, não há tempo para festejos!» O momento do jogo contra a Coreia só é especial porque, desta vez, ficou registado numa fotografia.
O mesmo espírito de conquista esteve presente num quarto de Amesterdão, que partilhou com o seu amigo e colega de equipa, António Simões, na véspera de conquistar a sua única Taça dos Campeões Europeus (e a segunda consecutiva do Benfica) em 2 de maio de 1962: «Amanhã, vamos ganhar!» Eusébio, que respeitava toda a gente e tratava por senhor os colegas mais velhos o senhor Coluna, o senhor Águas, o senhor Germano… perdia, por antecipação, o respeito a nomes como Di Stefano, Puskas ou Gento, as vacas sagradas do Real Madrid, adversários do dia seguinte, os melhores jogadores do mundo. Era como se, hoje, um júnior do Benfica, suponhamos, Ivan Cavaleiro, dissesse que iria ganhar, amanhã, a uma equipa onde estivesse Cristiano Ronaldo, Messi e Ribéry.
‘Temos ouro!’
Chegou a Lisboa, humilde, em 1961, mal sabendo articular uma frase com princípio, meio e fim. O Benfica desviara-o do Sporting, que também o cobiçava. Na verdade, os leões queriam-no à experiência, antes de se comprometerem com um contrato. Os dirigentes de Alvalade estavam escaldados por maus negócios e barretes recentes. Mas o Benfica oferecia um contrato. E Eusébio, que era menor (chegou com 18 anos, numa época em que a maioridade se atingia aos 21) viu o destino marcado pela sua mãe e encarregada de educação (ficou órfão de pai aos 8 anos), que se deixou convencer pelo Benfica. Ficava para trás um prometedor início de carreira no Sporting de Lourenço Marques, filial dos leões de Alvalade.
Chegou, humilde, dizíamos. E trazia uma carta de recomendação, assinada pela mãe, dirigida ao conterrâneo Mário Coluna, capitão dos encarnados e já com uma carreira brilhante na Luz: «Tome conta do meu filho!» Pouco depois, o rapaz humilde foi «desrespeitoso» com a fina flor dos seus novos companheiros de equipa. Não porque os tivesse ofendido, mas porque começou a jogar. E todos olharam uns para os outros: José Águas, José Augusto, José Torres, o jovem Simões… Quem é que vai sair? Assim.
Simplesmente porque o viram jogar. Eusébio tirava o lugar a qualquer um, num tempo em que a coisa era mais dramática, porque não havia substituições, durante os jogos…
Bella Gutman, o treinador, exclamava: «Temos ouro! Temos ouro!»