O ambiente é tenso: o primeiro-ministro novato e desconhecido do distante e minúsculo Portugal não pode estar a falar a sério. Como se atreveria este tal Guterres dirigir-se, desta forma, completamente ao arrepio de todas as regras do protocolo, ao poderoso chefe de Estado e ditador da Indonésia, Hadji Mohamed Suharto? António Manuel de Oliveira Guterres, então com 46 anos, tinha sido há pouco eleito chefe do Governo português.
Naquele ano de 1996, o futuro homem-forte do importante organismo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) era ainda um ilustre desconhecido. Estamos em Banguecoque, capital da Tailândia, país anfitrião da importante cimeira Europa-Ásia. Os indonésios ameaçavam que se Portugal levantasse a questão de Timor-Leste (ex-colónia portuguesa que a Indonésia ocupava a ferro e fogo desde 1975), eles se retirariam imediatamente. John Major, primeiro–ministro conservador britânico, propõe que se algum problema político bilateral for levantado, a palavra deve ser cortada ao prevaricador. Guterres sente-se o bardo da aldeia de Astérix: ninguém o quer ouvir. E o inglês é o ferreiro da aldeia, pronto a desferir o maço sobre a cabeça do pobre bardo: “Não falarás, não falarás, não falarás!” Mas Guterres resiste. Não pode perder a oportunidade.
Tem um problema: a saída de cena daquele tigre asiático provocaria o fracasso da cimeira, sem que Timor ganhasse nada. Pior, podia ser contraproducente.
O que fazer? Numa reunião informal, em que todos estão presentes, tomado de uma inspiração, Guterres arrisca tudo, dirigindo-se diretamente a Suharto: “Liberte Xanana Gusmão [líder da resistência timorense, prisioneiro em Jacarta] e Portugal aceitará a abertura de secções de interesses dos nossos países em embaixadas amigas em Jacarta e Lisboa!” Ninguém estava à espera: nem os asiáticos, nem os europeus, nem a diplomacia portuguesa. Mas também ninguém podia acusar Guterres de ter levantado um problema: pelo contrário, ele estava “de boa-fé”, a contribuir “para uma solução”. Suharto nada disse -mas também não se retirou.
Na abertura dos trabalhos, no dia seguinte, Guterres provoca alguns calafrios. Mostrando-se completamente de acordo com a decisão de serem excluídas da cimeira questões bilaterais entre os países presentes, avisa, porém, que no caso de Portugal, havia uma. Depois de um pequeno suspense, esclareceu: “É com a China, e trata-se da transferência de Macau. Mas isso está a decorrer pacificamente”. Parou um pouco. E depois rematou: “Já quanto à questão de Timor, não se trata de um caso bilateral, mas sim multilateral, no âmbito da ONU. Ora, já tive oportunidade de propor ao presidente Suharto uma saída para o problema, de forma a chegarmos a uma solução por etapas”.
Sem que a cimeira sofresse danos nos seus objetivos comerciais, o caso de Timor passou a ser o tema dos media internacionais. A habilidade diplomática de Guterres iniciava a sua lenda.
Não é normal que um português que foi primeiro-ministro durante escassos seis anos e acabou da pior maneira, seja, agora, aos 67 anos, o principal favorito ao cargo de secretário-geral da ONU, depois de, na passada segunda-feira, ter vencido a terceira votação das audições aos candidatos. Para se impor assim, é porque tem qualquer coisa. É disso que tratamos aqui.
OS PADRES DA VIDA DELE
Mas não antecipemos. Enquanto saboreamos esta história de one night in Bangkok, para citar um popular tema dos anos 80, recuemos seis décadas, e mergulhemos no Portugal profundo, na igreja matriz da Donas, pequena aldeia do concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco. Vamos encontrar velhinhas extasiadas com as leituras brilhantes das passagens da Bíblia, nas missas modorrentas desses domingos de verão. O pequeno acólito, conhecido por Tonico, filho do Virgílio Dias Guterres e da Ilda Cândida de Oliveira, neto de um avô pouco tolerante para com ratos de sacristia, começa a brilhar para a sua primeira audiência. Embevecido, o pachorento pároco Alfredo Fernandes de Brito sabe que pode ter ali uma vocação. O pequeno Tonico pode, se quiser, ter uma carreira eclesiástica brilhante. Talvez hoje, se as orações do bom cura tivessem sido ouvidas, Guterres disputasse, não a secretaria-geral da ONU, mas a cadeira de São Pedro, em Roma…
Na verdade, as memórias do provável futuro secretário-geral da ONU estão mais no seleto bairro de São Miguel, em Lisboa. Frequentou o Liceu Camões, onde conheceu, entre outros, Carlos Santos Ferreira, amigo de uma vida. Carlos seria um importante quadro no futuro PS, ocupando elevados cargos de gestão em grandes empresas. Foi em casa do amigo, futuro colega de curso de Marcelo Rebelo de Sousa, que Guterres conheceu o atual Presidente da República. Percorreram juntos um percurso comum, durante a juventude, sob a batuta do mais influente personagem na formação da personalidade de Guterres, o padre franciscano Vítor Melícias. O “Frei Tuck” do guterrismo, conhecido por “confessor do regime”, seria recentemente chamado por Marcelo para participar na reunião ecuménica que promoveu na mesquita de Lisboa, no dia da sua tomada de posse.
A chave da génese da formação cívica de Guterres pode ser encontrada no “esquema 13”, documento saído do Concílio Vaticano II. A sua formação política dispersa-se entre leituras de Trotsky, ensinamentos de São Paulo e…
uma conferência “maçónica”, através da palestra de um importante membro do Grande Oriente Lusitano, que muito o marcou. Detamo-nos um pouco nestes dois momentos. Primeiro momento: o esquema 13 exorta à intervenção dos cristãos na política, dando testemunho do seu cristianismo. Ao biógrafo de Guterres, Adelino Cunha, o antigo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, que foi seu ministro e o conheceu desde jovem, revela: “Há uma geração inteira de cristãos tocados pelo Concílio. Guterres era um dos mais brilhantes” (in António Guterres, Os Segredos do Poder, edições Aletheia, 2013). Marcelo Rebelo de Sousa disse, recentemente, num fórum internacional, e já em campanha por Guterres: “É a figura mais brilhante da minha geração” (ver texto do Presidente da República, nesta edição).
Segundo momento: pelos inícios de 70, Guterres assiste à palestra do colunista da Seara Nova e candidato às eleições pela CDE, em 1969, António Reis. E o que é que este maçon (cofundador do PS) tem a ver com a mensagem do Concílio? A palestra trata disso mesmo. António Reis desafia os católicos: sobretudo no quadro da ditadura portuguesa, não bastava seguir a mensagem de Cristo no recato dos altares. Era preciso agir.