Apetece abrir este texto com a mesma citação que o jornalista americano Jerry Ross usou, há mais de 50 anos, na sua reportagem, no New York Times, em abril de 1965, sobre o desembarque das primeiras tropas dos Estados Unidos da América em território vietnamita. “É difícil de acreditar que há uma guerra aqui, quando se olha em volta parece tudo tão pacífico.” A frase era atribuída a um sargento dos marines, ao olhar, do alto de uma colina, para a imensa baía de Danang, com a sua praia de areia incrivelmente branca que se estende ao longo de 14 quilómetros, frente a um mar povoado por enxames de pequenas embarcações de pescadores, num cenário enquadrado pela silhueta das montanhas, um horizonte de campos de arroz e o vaivém constante de pessoas, nas suas bicicletas e motas, deslocando-se a baixa velocidade e com o ar mais tranquilo do mundo.
Mais de meio século depois, o cenário mantém-se quase inalterado, quando observado da mesma colina. Apenas se destaca o desenho dos novos edifícios construídos no centro da cidade e junto à praia. De resto, a beleza natural continua lá, bem como o formigueiro das pessoas, agora a deslocarem-se sobretudo de motorizada, mas ainda devagarinho, como sempre, sem pressas ou stresses de qualquer ordem. É difícil de acreditar que houve uma guerra aqui, podemos agora repetir.
A guerra é hoje, de facto, apenas uma memória vaga, mas ajudou a impulsionar Danang em termos turísticos: a antiga base aérea dos EUA foi transformada num moderno aeroporto internacional, e os atributos da sua linha de costa continuam a beneficiar da fama alcançada nos tempos em que os americanos lhe chamavam China Beach, celebrizada em tantos filmes e séries de TV como zona de descanso para os militares, no intervalo das batalhas.
Agora, a praia voltou ao seu nome original de My Khe e ao longo da sua marginal podemos usufruir de algumas das melhores experiências gastronómicas do Vietname – facto só por si assinalável num país cuja cozinha tem, justamente, grande fama mundial. Por estas bandas, no entanto, o segredo está no produto: a enorme variedade de mariscos, bem frescos, pescados todas as noites pelos pescadores locais e que depois são exibidos, ainda vivos, em aquários e alguidares de água. Nem precisamos de ementa ou de saber falar vietnamita: basta apontar e… ir para a mesa.
Patrimónios da Humanidade
Tendo Danang como base pode-se explorar, num raio de poucos quilómetros, três locais que a UNESCO declarou como património da Humanidade. É preciso, no entanto, antes de se meter a caminho, ter a certeza que se absorveu já bem a medida de tempo dos vietnamitas. Ou seja, perceber que quando lhe dizem que as ruínas arqueológicas de My Son estão a cerca de 60 quilómetros de distância, ter já a noção de que vai demorar quase duas horas para lá chegar – a estrada até é plana, só que nunca verá algum motorista acelerar acima dos 45 km/hora, mesmo quando tem a via completamente deserta, sem motociclistas (e isso só sucederá, convenhamos, por puro milagre!).
Mas é essa serenidade, profundamente enraizada na população, um dos maiores encantos do Vietname. Ela é bem patente na beleza desoladora de My Son, antigo santuário da civilização champa, que reinou nestas paragens entre os séculos III e XII, até ser derrotada pelos invasores do Norte. As ruínas, aparentemente perdidas no meio da selva, permitem uma autêntica viagem no tempo e às características espirituais de um império remoto que, para todos os efeitos, fez com que esta zona fosse uma espécie de fronteira entre o Norte e o Sul do Vietname.
Da beleza quase desértica de My Son podemos saltar, após mais de uma hora de viagem (sempre em marcha lenta!), para a vibração superpovoada, mas suave, do antigo porto de Hoi An – uma cidadezinha adorável, de casas antigas, construções influenciadas pelos antigos navegadores portugueses, mercadores chineses e nobres japoneses. É muito turística? É, mas continua a ser adorável, com a sua imensidão de cafés lado a lado com um mercado tradicional, as suas pequenas lojas de tecidos e os muitos alfaiates – capazes de confecionar um fato ou um vestido numa tarde! –, além de um sem-número de restaurantes a que apetece regressar numa ocasião futura.
A noite é o segredo mais bem guardado de Hoi An. Já sem as hordas das excursões turísticas, a cidade enche-se de balões coloridos e, aos poucos, vai ficando mais pequena e frágil, acessível para ser descoberta calmamente, a pé, sem pressas e… com o espírito autêntico dos vietnamitas.
No fundo, essa é a mesma sensação que se pode ter em Hué, antiga capital imperial, com a sua cidadela inspirada na Cidade Proibida, de Pequim. À noite, nas margens do rio do Perfume que a atravessa, em especial junto ao delicado Pagode da Dama Celestial, conseguimos ficar completamente imersos na serenidade que emana de um conjunto arquitetónico sabiamente erguido para nos tentar aproximar dos espíritos. Não interessa que possamos estar, nesse momento, rodeados por uma multidão (afinal, este é um dos países mais populosos do mundo), entre crianças a brincar, pares de namorados virados para o rio ou grupos de jovens a brindar em esplanadas improvisadas. O que se sente é, acima de tudo, uma longa e infinita paz. Como é que pode ter havido aqui uma guerra?
Artigo publicado na VISÃO 1282 de 28 de setembro