Gostava de dizer que era o vento que o levava, porque não tinha uma direção definida. Como uma espécie de folha seca ou saco plástico a rodopiar, às gargalhadas com o rodopio. Achava graça que fosse assim, era um estilo de vida como outro qualquer, ele dizia um “merry-go-round” que em inglês significa “carrossel” mas a mim, que sou português, o “merry-go-round” soava-me a “Maria-vai-com-as-outras”. Expliquei-lhe, ele riu-se, “why not?”
Alguns anos depois, não sei se ainda levará o mesmo estilo de vida why not? Era um estilo de vida fabuloso, como diz o ditado: “o que a gente leva desta vida, é a vida que a gente leva.” O que o Cedric levava daquela vida era a alegria das outras vidas que viajavam com ele. Conhecia a África Austral muito bem, um branco com a alma negra. Tinha ficado um par de meses paraplégico com o estilhaço de uma granada que se enfiara na cervical, no sul de Angola. Ele, sul-africano, fora obrigado a entrar na guerra como todos os outros jovens brancos sul-africanos do tempo do Apartheid, o inimigo a abater era o regime comunista de Luanda e o seu aliado cubano.
Cedric dizia que não tinha nada contra o regime comunista de Angola, mas, como todos os outros brancos do Apartheid, não tinha alternativa: o serviço militar era obrigatório. Veio daí o gosto pelo mato, pelo poente, pelas estrelas, pelo cheiro do relento africano. De qualquer das formas, os brancos sul-africanos crescem com horizontes abertos, caminham pelas montanhas, percorrem os desertos, surfam nas ondas mais bonitas do mundo, planam sobre os vales de fruta e vinha com as brisas mais puras da atmosfera terrestre. Os outdoors, a Natureza, a liberdade está-lhes no sangue e na cultura.
Cedric conduzia um Land Rover do qual tinha um orgulho e uma paixão quase infantil, o próprio veículo era um bocadinho carinhoso e caricato, uma relíquia tirada do imaginário dos filmes de Indiana Jones, sem qualquer conforto, reduzido ao mínimo espartano e essencial. No teto, por dentro, na chapa cor de leite-creme, estavam dezenas de mensagens e assinaturas: tudo o que restava de todos os outros passageiros que tinham viajado com o Cedric.
Era isso o que ele levava da vida: viagens partilhadas. A África Austral está pejada de hostals, backpackers, parques de bungallows, pubs situados em lugares com vistas magnificas, bares da última esperança antes de um território vazio.
O que estes estabelecimentos têm em comum é que são poisos de mochileiros, de viajantes sem pressas e sem datas, de sensibilidades disponíveis para as oportunidades do destino.
O Cedric era uma oportunidade do destino. Chegava a um destes lugares, como o Chameleon de Windhoek, onde o conheci, ou como o Jolly Backpackers, das Cascatas de Victoria, onde o reencontrei, ou como o Fatima’s de Maputo, onde falhámos um outro encontro por poucos dias; montava a tenda ou alugava uma tarimba no dormitório, afixava a sua proposta e os seus contactos no painel das mensagens, e esperava. A proposta dizia: “Tenho um Land Rover completamente autónomo e equipado (material de cozinha, tenda, etc.), vou na direção de tal e tal pelo itinerário tal e tal e procuro companhia para dividir as despesas da gasolina. Estou na cama x do dormitório y, o meu telemóvel é este. Contacta-me se estás interessado.” Não queria mais. Queria viajar e queria partilhar, bastava-lhe gastar apenas o estritamente necessário para se sentir recompensado. Se cozinhas a tua comida em África vais muito longe com pouco dinheiro.
Se dormes na tua tenda ainda vais mais longe. O combustível é o maior problema do viajante por conta própria, o Cedric resolveu o seu maior problema com flexibilidade de tempo e simpatia social.
Quando nos conhecemos, ele estava à espera de companhia, eu estava à espera de um visto, que nunca mais chegava, para poder entrar em Angola. Na realidade, não era o visto que nunca mais chegava, era a resposta da Embaixada de Angola em Windhoek. Será que me iam dar o visto? Um dia diziam que devia ser possível; outro dia, diziam que afinal só mesmo daí a três ou quatro meses é que poderia chegar uma indicação da Embaixada de Angola em Lisboa sobre a minha situação.
Eu perguntava: porquê Lisboa? A Embaixada na Namíbia não tem autoridade para emitir um visto? Umas vezes respondiam, sim, tem. Outras vezes respondiam, você é cidadão português, devia tratar do seu visto em Portugal. Eu explicava, mas estou a viajar por África, e não posso ir de propósito a Portugal. Eles encolhiam os ombros e suspiravam. Eu desesperava.
O Cedric ensinou-me a ter paciência, ou pelo menos a ter paciência em África. São as regras do continente: tudo pode acontecer, ou não. Tem calma, aprende a esperar e habitua-te a sorrir. A vida é mais fácil quando é levada com serenidade e humor. Os dias passavam, ele esperava os seus futuros companheiros de viagem, eu esperava o visto para continuar a minha viagem.
Alguns anos depois, quem sabe se o Cedric continua a viajar na mesma fórmula desinteressada e enriquecedora, se continua em África, se terá subido o continente, do Cabo ao Cairo e do Egito pelo Médio Oriente à volta do Mediterrâneo, quem sabe se um dia destes ainda me aparece a bater à porta, cheio de orgulho infantil no seu Land Rover, “vê onde o vento me trouxe, vê até onde me leva esta vida que tenho levado”.
“E agora, Cedric?”, terei então que lhe perguntar. Ao que responderá: “E agora, uma nova viagem, uma nova corrida, num carrossel que para rodar e rodopiar só precisa de amigos e de estrelas, de uma pitada de paciência, de serenidade e humor. Why not?”