Sentada no Raj’s Spanish Café, em Calcutá, deixo o meu espírito vagar entre o próximo personagem dos retratos indianos e o pensamento de que Calcutá pode transformar-se, num abrir e fechar de olhos, para quem está apaixonado por este país, na sua pequena “versão inacabada do paraíso”.
Não marca a sua presença (ainda) nos guias turísticos e a localização resguardada deste café torna-o facilmente despercebido ao mais distraído dos turistas. Vêm-se poucos ou nenhuns indianos e o ambiente é dominado, em grande parte, pela presença dos voluntários das várias ONG que abundam pela cidade. Aqui, ouvimos espanhol e comemos huevos rotos con gazpacho.
E foi através de um voluntário português das Irmãs da Caridade que conheci o dono do café. Este indiano prende-me a atenção pelas suas ideias e pensamentos tão divergentes da maioria dos indianos com quem me cruzo e, ao mesmo tempo, tão atuais. Como ele diz, a Índia está a evoluir e nós temos de a acompanhar. Hoje em dia, os casamentos arranjados como tantos outros factos na Índia, já não fazem sentido.
A primeira vez que comecei a falar com o Raj, fomos interrompidos vezes sem conta pelo toque do seu telemóvel. É um homem ocupado, mas isso já eu tinha percebido antes de me ter sentado à mesa com ele. Preferimos deixar para o dia seguinte. E assim foi.
Não sei bem como explicar isto mas o Raj tem tanto de sério e interessante que ter uma conversa com ele faz-nos pensar. Ao contrário de todos os outros indianos com quem privei nestes momentos de “entrevista”, onde cada olhar, reação e resposta dava azo a gargalhadas, com o Raj não fui capaz de obter um só momento assim. Pelo contrário, senti-me retraída e acanhada com tanto conhecimento e experiência de vida. Não que me tenha falado muito dele próprio, pelo contrario. Mas a forma como falava…
Rajendra Prasad Pal tem 37 anos e nasceu a 15 de Fevereiro de 1974. Desta vez, não podia esperar que ele falhasse na data de nascimento ou na idade. É natural de Varanasi, conhecida como a cidade sagrada da Índia, mas mudou-se com a família para Calcutá com apenas três anos. Viver em Calcutá, morrer em Varanasi, acrescenta ainda a sorrir. O sonho de qualquer hindu é, não só, morrer em Varanasi mas ter as cinzas atiradas ao rio Ganges. É como que um voo com passe livre para o caminho do nirvana. É casado e tem três filhos.
É dono não apenas do Raj’s Spanish Café, mas também de uma loja de roupa e de um espaço com internet. O horário de trabalho é duro: catorze horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. O que lhe faz doer a alma? Trabalhar com 45 graus, horas e horas seguidas, tento adivinhar. Errei. É não ter tempo para estar com os filhos. Conta-me que não são muito bons alunos e culpabiliza-se, em parte, pelo desinteresse dos filhos na escola. Até a mim me doeu.
Espantou-me saber que além de inglês, hindi e bengali, língua oficial do estado de West Bengal, fala ainda fluentemente espanhol. Se teve aulas para isso? Não foi necessário. Os turistas que frequentam o seu café são, maioritariamente, espanhóis e assim, de ouvido, foi aprendendo. E Espanha não é uma novidade: a procura de trabalho, na ânsia de uma vida diferente, já o levou por quatro vezes a visitar este país.
Apanha-me desprevenida quando me diz que em Calcutá temos de ter atenção a um aspeto: nem todos os pedintes são pobres e nem todos os pobres são pedintes. E isto fez-me pensar, mais uma vez. Numa cidade aclamada e vendida aos turistas como um tesouro louvável da cultura indiana, cujas atividades e pontos turísticos serão a fonte de boas lembranças para uns, já para outros a cidade deixa uma impressão que irá assombrá-los para o resto das suas vidas. E aqui penso que incluem os mendigos, essas crianças, mães e velhos de mão estendida e olhos vazios e despidos de emoção. Se me choca? E não é pouco. Se me faz pensar? Mais do que desejaria. O sentido da vida, aqui para nós, ou se torna muito claro ou leva-nos a lugares esquecidos e resguardados na nossa memória. Toca-nos fundo e deixa-nos sem defesas.
Admite, depois de alguns segundos em silêncio, que enquanto andamos neste mundo, devemos vivê-lo inteiramente com três objetivos como pano de fundo desta nossa jornada – viajar, ler e conhecer pessoas. Viajar está fora de questão, por enquanto, porque não tem dinheiro para isso. A falta de tempo não lhe permite ler o quanto gostaria. No entanto, estes dois são compensados pelas pessoas que conhece diariamente e frequentam o seu café durante meses a fio.
Não tinha muito mais para lhe perguntar. Eu sabia tão pouco e ele tinha tanto para oferecer. Recorri à última pergunta que tenho sempre na manga, a que mais me interessa. És feliz? Levantou o sobrolho, olhou-me de soslaio, sorriu e proferiu calma e pacientemente “It’s a hard question. Who is happy? Who is happy? Bring someone who is happy!”. Fico sem palavras.
Helena Pimentel
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