No início de cada “conversa” interrogo sem hesitação o nome completo da pessoa, a idade e a data de nascimento. Por não preparar antecipadamente uma lista de questões ou matutar sequer nisso, estas são perguntas padrão simples e óbvias onde descubro – melhor, onde estes indivíduos me oferecem – logo à partida, e de forma hilariante, chão para continuar. Desta vez, não foi exceção.
Ram Kishan Gawlani. Tem 64 anos e nasceu a 8 de Maio de 1950. Apontei no meu caderno e franzi o sobrolho. Comecei a rir-me, achei que ele estava a gozar e ia ainda corrigir. Ele olhou atónito para mim, não percebendo onde se encontrava a piada na resposta dele, e manteve-se sério à espera da pergunta seguinte. Eu não sou boa a fazer contas, nunca fui, mas esta era fácil. Ou ele desconhece o ano em que nasceu ou também não sabe fazer contas. Controlei-me e prossegui. É hindu, casado há quarenta anos e tem quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas.
Mas o que tem de tão excêntrico ou especial este homem? Se estiverem em casa, peguem numa frigideira e misturem dois ovos, queijo, coentros, pimenta e um molho à base de ketchup e maionese e tentem fazer uma omeleta. Com toda a certeza, não farão a “melhor omeleta do mundo”, qualificam-na assim os entendidos na matéria. Faltar-vos-á folhas de jornal para embrulhar a omeleta, bancos encardidos para se sentarem a saborear à altura dos tubos de escape, vacas a passear e a aproveitar os restos e uma parafernália de sons de uma típica praça de Jodhpur. Se existe nome para definir a sua profissão, eu não estou ciente dele. No entanto, nesta cidade, ele é o “omolette man” de referência desde 1974.
A primeira vez a surgir no guia da Lonely Planet data de 1999. E, a partir daí, já perdeu a conta às vezes que foi mencionado e sugerido. O artigo português do Fugas, o suplemento do Jornal Público, tem-no lá plastificado, juntamente com os vinte cinco cadernos repletos de mensagens e assinaturas dos viajantes esfomeados e curiosos que por lá passaram.
Na sua “Omolette Shop” – ou “Omolette Shoppe” como indica o colorido e corroído menu – tem à escolha vinte e dois tipos de omeletas diferentes, criadas por ele, sendo que a mais famosa é a Cheese Masala Omolette. Vende cerca de mil e duzentos ovos e confeciona trezentas omeletas diariamente. Trabalha todos os dias do ano, “no holidays” acrescenta ainda. Indaguei sobre o facto de já ter tido reclamações ou problemas intestinais relatados posteriormente. A rir-se replicou “no, no, no, everybody is happy in my shop”.
É vegetariano e, por isso, não come ovos. Nem às escondidas? Novamente aquele olhar atónito. Nem se deu ao trabalho de me responder.
O seu inglês é entaramelado e tímido. Veste um fato castanho coçado – ou será cinzento? – que sugere um empregado fabril, com uns chinelos pretos e gastos pelo uso e pelo tempo. Abre constantemente a boca num sorriso luminoso, o que realça a sua falta de dentes. Tem a barba esbranquiçada por fazer, olhos castanhos e óculos a condizer de graduação razoável. É careca, mas o cabelo que lhe resta, e consoante a estação do ano – Verão ou Inverno – está pintado de laranja ou preto, respetivamente. Além disso, como declarou muito jovialmente, as pessoas vão lá para lhe tirar fotografias e tem de estar jovem e bonito. O antebraço direito ostenta, orgulhosamente, uma tatuagem com o seu nome. É uma figura simultaneamente cómica e agradavelmente simpática.
Por falta de imaginação, perguntei se alguma vez tinha atirado com ovos a alguém no decurso de uma pequena briga ou exaltação. A expressão facial posterior dizia literalmente “deves estar a gozar comigo!”. Soltou uma gargalhada estridente e com gosto, mas com uma delicadeza e presença de espírito, muito solene e calmamente, redarguiu que não, era óbvio que nunca tinha atirado com ovos a ninguém. Que comportamento absurdo e despropositado, deve ter ele pensado. E interiormente devolvi-lhe esse pensamento quando, de seguida, me conta que na sua família têm a tradição, no dia anterior ao casamento, de ir a casa do noivo e não só rasgam a sua roupa como lhe partem ovos na cabeça. Despedida de solteiro inédita, pensei, e olhei estupefacta para ele.
Como sempre, quis saber se era feliz. Com o pé direito enfiado no caixote do lixo, imagino eu para afundar e comprimir o conteúdo de modo a obter mais espaço, perguntei-lhe se era feliz. Resposta pronta e rápida. “Everytime I’m happy. No tension”.
Helena Pimentel www.daravolta.com www.facebook.com/daravolta