Na
Visão Vidas & Viagens de Janeiro
faça uma viagem ao estilo ?
made in USA?
(pág. 40), com escalas em
Boston
(pág. 52) e no bairro mais palpitante actualmente em
Manhattan
(pág. 102). Sem esquecer o Parque de
Yellowstone
(pág. 78) e a incrível The Wave (pág. 90) em
Paria Canyon
« I have a dream…»
As palavras de Martin Luther King estão gravadas na pedra, marcando o local exacto, a meio da escadaria de acesso ao Memorial Lincoln, onde o pastor negro fez história. Naquela tarde de 1963, King discursava para mais de 250 mil pessoas que ladeavam as margens de um lago artificial com 600 metros de comprimento (a Reflecting Pool), que espelha permanentemente o Monumento Washington ? o obelisco mais alto do mundo, com 169 metros, construído em honra do primeiro Presidente norte-americano. A escultura de mármore e granito marca o coração do monumental parque conhecido como The Mall, um milhão de metros quadrados de jardins e lagos, museus e galerias, cemitérios e monumentos em honra de soldados e presidentes desaparecidos.
Na «sombra» do obelisco ergue-se o Capitólio, com a sua inconfundível cúpula neoclássica. É nas escadarias do lado oeste do edifício, avistando no horizonte o Memorial Lincoln, que Barack Obama jurará publicamente servir os Estados Unidos. Ao meio-dia de hoje, 20 de Janeiro de 2009, também o Mall estará cheio de gente para o ouvir. Dos degraus onde Luther King discursou até à escadaria onde o primeiro Presidente negro da América fará a sua jura solene é uma longa caminhada. Mas também foi longo o caminho do povo americano para chegar a este dia.
As celebrações da Inauguração, que duram dez dias, num país pouco dado a férias e feriados ? começam cinco antes e só terminam cinco dias depois ?, prometem ser mais especiais do que nunca. Segundo a polícia local, cerca de 4 milhões de pessoas vão querer juntar-se à festa, nas ruas da capital política de um novo mundo.
Ficam avisados, portanto, todos os que tenham fobia de multidões. Nem mesmo a extraordinária capacidade de organização norte-americana ou a apertada segurança retirarão impacto à torrente humana que invadirá as ruas, agitando bandeirinhas de riscas e estrelas, lutando por um lugar especial para ver a História acontecer. Nesse caso, mais vale ficar por casa e sintonizar a CNN.
Mas aqueles que ponderem visitar Washington nestas datas viverão, garantidamente, uma experiência inesquecível. Até porque a cidade, seja agora ou em qualquer outra altura do ano, é surpreendente e arrebatadora. E descobri-la seguindo os passos das grandes figuras da História americana, num ano ímpar como este, não poderia ser mais apropriado.
Os vizinhos da Casa Branca
Mesmo quando se chega pela primeira vez, a descoberta da cidade assemelha-se a um reencontro. Há algo de familiar nas ruas de Washington D.C. ? tal como Nova Iorque, a capital federal dos Estados Unidos já serviu tantas vezes de cenário a séries de televisão e a filmes de Hollywood que é impossível não sentir que se reconhece cada esquina. É apenas uma ilusão, claro, um efeito especial da nossa memória que rapidamente perde o efeito. Sobretudo quando se chega à porta da Casa Branca. É como a Mona Lisa: muito mais pequena do que poderíamos imaginar.
Garantido é o espectáculo que, invariavelmente, decorre em frente aos seus portões. Não há um dia do ano sem manifestações e alguns activistas fizeram do local a sua «casa», vivendo na avenida Pensylvannia há décadas. É o caso de Concepcion Picciotto, uma galega de 63 anos que, desde Agosto de 1981, não arreda pé do passeio em frente à casa do Presidente dos Estados Unidos, mantendo uma vigília pacifista que apela ao fim das armas químicas e nucleares. Conchita, como acaba por pedir que a tratem após dois dedos de conversa, aprecia que a abordem e que discutam com ela as questões da segurança mundial. Fala inglês, italiano, espanhol e até um pouco de português (diz, com um sorriso, que nasceu mais perto de Portugal que de Madrid…). E tem centenas de panfletos, numa dúzia de línguas, que explicam a sua causa a cada turista que se aproxima.
Ao seu lado, instalam-se manifestantes para todos os gostos. Há os que condenam a guerra no Iraque, os que alertam para o ameaçador «Big Brother» que a todos vigia, os que acreditam em extraterrestres, os que anunciam o fim do mundo. A polícia já os ignora, passando apenas de vez em quando à frente das suas «tendas» ? e de bicicleta, que a rua da Casa Branca está fechada ao trânsito deste os atentados bombistas de Oklahoma, em 1995.
As sirenes são, aliás, uma banda sonora muito menos presente aqui que em Manhattan e, quando se fazem ouvir, podem ter significados muito mais interessantes. Em Washington, o barulho das ambulâncias e dos carros de polícia é claramente ultrapassado pelo dos comboios de carros e motas que acompanham os altos representantes do governo.
E quanto mais sirenes e mais veículos, maior a importância de quem circula. Ou, pelo menos, assim se esperaria. O (quase) ex-vice-presidente Dick Chenney tornou-se piada frequente entre os habitantes por fazer mais «espalhafato» que o próprio George W. Bush, tendo sempre 25 motas a escoltar o seu carro.
De pântano a centro do mundo
Em Washington, a vida rege-se por ciclos políticos, ou não fosse o governo o maior empregador da capital federal, garantindo, directa ou indirectamente, trabalho a três quartos da população de 580 mil habitantes. É preciso não esquecer que, ao contrário de todas as outras grandes cidades norte-americanas, D.C. não se tornou numa metrópole importante pelas suas riquezas minerais ou pela importância estratégica de um rio ou de uma costa marítima. Há pouco mais de 200 anos, era apenas um pântano, cruzado pelos rios Potomac e Anascotia. Mas foi ali que os beligerantes do Sul e do Norte acordaram em erguer a futura capital dos Estados Unidos ? a zona era suficientemente central para não ser encarada como território de uma das partes envolvidas na Guerra Civil.
O primeiro presidente norte-americano, George Washington, ainda tomou posse em Nova Iorque, em 1789. A capital nasceu formalmente no ano seguinte, com a cedência de terras da Virginia e de Maryland, sob a designação «Distrito de Columbia», sendo a área destinada à construção do Capitólio baptizada com o nome do Presidente Washington em 1801, quando Thomas Jefferson assumiu a chefia da nação. Só em 1871 o Congresso aprovaria uma lei que renomeou definitivamente a capital, incluindo nela as cidades vizinhas de Georgetown e Alexandria, fazendo a junção dos nomes Washington e Distrito de Columbia (D.C.).
Hoje, a cidade cresceu e modernizou-se mas ainda reserva muitos dos seus bairros originais. Para melhor compreender como era a Washington desses tempos, é obrigatório visitar Georgetown, com as suas casas de pedra e madeira, em ruas estreitas e floridas que convidam a passeios a pé. Aqui, tal como em Veneza, o ideal é passear sem destino, com o espírito aberto para as surpresas que surgirem ao virar da esquina. É também o bairro onde será mais provável encontrar um senador ou congressista famoso, fazendo compras no café-supermercado gourmet Dean & DeLuca ou almoçando no selecto Café Milano ? John Kerry, Dick Cheney ou Madeleine Albright, por exemplo, têm aqui casa, com vista sobre as águas do Potomac.
Durante a semana, contudo, é mais provável avistar o senador John McCain ou a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, nos restaurantes das imediações do Capitólio. O Johnny’s Half Shelf, onde os mariscos têm destaque, rivaliza com o chiquérrimo La Colline, de inspiração francesa. No restaurante Nora os almoços são quase todos de trabalho e não é invulgar ouvir as conversas de representantes de grandes grupos de pressão, lançando charme a congressistas, ou as eternas discussões sobre a paz no Médio Oriente.
Ao final do dia, arrumadas todas as discussões, os políticos gostam de descontrair no Café Asia ou no irlandês Hawk and Dove, nas vizinhanças da Casa Branca, ou no Chi-Cha Lounge, no chamado «corredor da rua U», uma das áreas comerciais mais animadas de D.C.que, em tempos, foi designada por «Broadway Negra», por albergar vários teatros e casas de jazz famosas, onde Duke Ellington costumava tocar.
Berço dos direitos civis
A capital do país que acaba de eleger o seu primeiro Presidente negro tem, no seu ADN, as marcas da luta pelos direitos civis. Foi aqui que a escravatura foi abolida em primeiro lugar nos EUA, oito meses antes da Proclamação da Emancipação, em 1862, só para dar um exemplo. Esse passado ainda ecoa em muitos pontos da cidade e o Departamento de Turismo de Washington, reconhecendo a importância desses locais, desenhou um percurso pedestre, dividido em três partes, baptizado de «Heritage Trail ? from Civil War to Civil Rights».
O percurso central, que não obriga a mais do que uma hora de caminhada, permite descobrir tesouros como o antigo Mercado Central, onde se negociavam frutas, cavalos e escravos. O poeta Walt Whitman era um frequentador do local e a sua Prece a Colombo está gravada numa parede de granito, junto ao que hoje é o acesso da estação de Metro. O mercado já não funciona e o edifício serve agora de sede aos Arquivos Nacionais. O que não retira interesse algum ao local, «decorado» em 1935 com colunas majestosas e esculturas de heróis americanos, conferindo
outra dignidade ao espaço que guarda os originais da Declaração de Independência e da Constituição americana. Na rua F, entre a 7.ª e a 9.ª avenidas, um dos bairros do século XIX que melhor mantiveram o seu charme, descobrem-se os edifícios onde Samuel Morse inaugurou o primeiro telégrafo público e o Presidente Abraham Lincoln deu o seu baile inaugural para mais de 4 mil convidados. E ali bem perto, na 10.ª avenida, fica o Ford Theatre, onde Lincoln seria alvejado mortalmente, em 1865, enquanto assistia com a mulher à peça Our American Cousin. Do outro lado da rua fica a Petersen House, o pequeno hotel (hoje, um museu) para onde o 16º presidente foi levado pelos médicos, para ser socorrido de urgência – mas já nada havia a fazer e ele acabou por morrer numa cama estranha e demasiado pequena para si.
Lincoln, cujas palavras são sempre citadas nos discursos de Barack Obama, voltará a ser uma figura central em Washington em 2009, ano em que se comemoram os 200 anos do seu nascimento. Só entre Janeiro e Abril já estão agendadas mais de 75 exposições, peças teatrais e palestras integradas no ciclo «Living the Legacy: Lincoln in DC».
Capital do ?lobby?
Mas todos os caminhos vão dar à Pennsylvania Avenue, qual Roma dos nossos tempos. Além da Casa Branca, esta imensa avenida serve também de morada à sede do FBI (as visitas guiadas dos agentes têm muita procura), ao Edifício Ronald Reagan, sede federal dedicada ao comércio internacional e à globalização, e ao Departamento de Justiça americano, onde o procurador-geral tem o seu gabinete, e a várias agências governamentais, museus e hotéis de charme.
A melhor vista panorâmica sobre a monumental avenida, pelo menos entre as que estão acessíveis a «civis», obtém-se a partir do terraço do Hotel Washington, um bonito edifício de 1917, na 15.ª avenida. A dois passos fica o Willard Hotel, em funcionamento desde 1850, onde se hospedaram quase todos os grandes dignitários mundiais de visita à capital e muitos dos presidentes-eleitos, antes de se poderem mudar para a Casa Branca. Foi aqui que o general Ulysses Grant inventou o termos «lobistas», para designar os que moviam influências enquanto bebiam um brandy no lobby daquele hotel. Foi também no Willard que Martin Luther King escreveu o discurso I Have a dream. Se a carteira o permitir (quartos duplos a partir de ?250), este é a base ideal para explorar os muitos segredos de Washington ? e adormecer embalado pelas histórias dos que se bateram pela concretização do sonho americano.