Quase 4000 operacionais, apoiados por 1.200 meios terrestres, combatiam esta quinta-feira, a meio da manhã, mais de 100 ocorrências em Portugal continental, de acordo com a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil. As operações estão a evoluir “favoravelmente”, auxiliadas pelas mudanças no estado do tempo.
Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), o perigo de incêndio rural começa a desagravar a partir de hoje, estando previstos períodos de muita nebulosidade e aguaceiros nas regiões do Norte e Centro para os próximos dias. Vários concelhos dos distritos de Santarém, Coimbra, Leiria, Castelo Branco, Coimbra, Portalegre, Guarda, Aveiro, Braga, Viana do Castelo, Porto, Vila Real, Viseu, Bragança e Faro permanecem hoje, no entanto, em perigo muito elevado de incêndio – o segundo mais grave. Apenas Penela, no distrito de Coimbra, se mantém o único em perigo máximo de incêndio. Espera-se que a descida da temperatura, diminuição do vento e aguaceiros previstos em algumas regiões do continente ajudem no combate às chamas.
Os incêndios que mais preocupam as autoridades encontram-se agora em Castro de Aire e Arouca. “Temos incêndios ainda com alguma severidade nos concelhos de Castro Daire e Arouca. São fogos ainda com forte atividade que justificam um número significativo de meios, sendo que no concelho de Castro Daire, na sub-região de Viseu Dão Lafões, temos 550 operacionais, apoiados por 178 veículos, e no concelho de Arouca temos 234 operacionais, com 71 veículos”, adiantou o comandante Pedro Araújo, da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, à agência Lusa esta manhã.
Newsletter
As chamas de Castro Daire, no distrito de Viseu, são as que estão a mobilizar, neste momento, mais operacionais no País. “Tivemos alguma pressão sobre o edificado, sobre habitações no concelho de Castro Daire e de Arouca. O incêndio esteve próximo de habitações, o que levou os combatentes a fazerem a proteção a essas habitações, mas não temos conhecimento de que durante a noite tenham ardido habitações ou que destes incêndios tenham ocorrido vítimas entre os populares”, acrescentou o comandante.
Em Vila Pouca de Aguiar as operações vão ser reforçadas hoje com mais 120 operacionais espanhóis, segundo Artur Mota, comandante sub-regional do Alto Tâmega da Proteção Civil. No terreno estão cerca de 100 operacionais a combater as chamas que lavram numa zona de difícil acesso. “É o local que nos oferece mais perigo. Se o resolvermos, à partida o resto vai ser vigilância, mas até à noite ainda vamos ter situações mais complicadas porque se prevê um agravamento da meteorologia, com um aumento da intensidade do vento para o final da tarde”, referiu.
Já os dois fogos rurais que deflagraram este domingo em Sever do Vouga e em Pessegueiro do Vouga, no distrito de Aveiro, encontram-se em fase de resolução. Pelas 10h30 desta manhã, segundo o site da Proteção Civil, encontravam-se no terreno, em Pessegueiro do Vouga, 566 operacionais, apoiados por 162 viaturas, e 338 operacionais e 98 viaturas em Sever do Vouga. “O fogo já está em rescaldo e vigilância, as condições climatéricas durante a noite ajudaram, mas ainda há muito trabalho para fazer”, explicou Paulo Nogueira, vice-presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga, à Lusa.
Também o incêndio que lavra desde o final da tarde de terça-feira no Alto de Fiães, em Alijó, entrou em fase de resolução esta madrugada. O fogo, que já esteve em resolução, reativou durante a tarde de quarta-feira, na freguesia de Vilar de Maçada, no distrito de Vila Real.
Desde domingo já morreram sete pessoas e cerca de 120 ficaram feridas nos incêndios que estão a devastar as regiões Norte e Centro do país. Dezenas de casas foram destruídas e os fogos levaram ao corte de estradas e autoestradas. Existem condicionamentos, esta manhã, na EN 326-1, em Aveiro, com um “corte total entre Canelas e Alvarenga”. Já em Viseu, o corte total é entre Castro Daire e Portas de Montemuro, Cinfães, na EN 321.
O grupo chinês Flax Typhoon criou uma rede que controlava milhares de dispositivos conectados, como câmaras, sistemas de gravação de vídeo e de armazenamento de informação, além de routers, com o objetivo de “espiar infraestruturas críticas nos EUA e no estrangeiro, desde empresas a organizações de media, universidades e agências governamentais”, avançou Christopher Wray, diretor do FBI , numa conferência de cibersegurança onde revelou que as autoridades americanas conseguiram tomar conta desta botnet.
“Ao trabalhar em colaboração com os nossos parceiros, executámos as operações autorizadas pelos tribunais para tomar controlo da infraestrutura da botnet (…) quando os criminosos se aperceberam do que estava a acontecer, tentaram migrar os bots para novos servidores e até realizaram um ataque [do tipo DDoS – Distributed Denial of Service] contra nós”. As declarações de Wray foram feitas durante a conferência Aspen Cyber Summit, mas o porta-voz do FBI não adiantou mais comentários quando questionado pelo Tech Crunch.
Na quarta-feira, o FBI, a Cyber National Mission Force e a National Security Agency publicaram um comunicado onde ligam uma rede de 260 mil aparelhos comprometidos ao governo chinês e explicam que a rede estava a ser usada para ocultar as operações dos hackers. A rede estaria a ser operada e controlada pelo Integrity Technology Group, que tem ligações à China e que será o nome ‘formal’ do grupo de hackers Flax Typhoon.
Newsletter
A botnet afetava dispositivos conectados com o Mirai, um malware desenhado para controlar grandes volumes de aparelhos. A ferramenta tornou-se código aberto em 2016, depois de um grupo de hackers a terem usado para lançar a maior vaga de ataques DDoS da altura.
Já o Flax Typhoon tinha uma base de dados de “mais de 1,2 milhões de aparelhos comprometidos, incluindo mais de 385 mil vítimas únicas dos EUA, quer já exploradas no passado ou a ser exploradas ativamente”, avança o Tech Crunch.
O grupo tem estado ativo desde 2021 e, segundo a Microsoft, já atacou “dezenas de organizações” em Taiwan. A ESET observou que este conjunto tem atacado vários servidores Microsoft Exchange naquele território, apontando para “várias organizações governamentais, mas também uma consultora, uma empresa que produz software de marcação de viagens, farmacêuticas e empresas de eletrónica”.
No passado, as autoridades ocidentais revelaram estar a seguir um grupo chamado Volt Typhoon, associado a atos de ciber sabotagem contra infraestruturas críticas dos EUA e que também foi associado à China. Na altura, Pequim disse que se tratava de um gangue especializado em ransomware e demarcou-se de qualquer responsabilidade.
Renata Cambra vai fundar um novo partido político. O lançamento do projeto da ex-líder do Movimento Alternativa Socialista (MAS) está agendado para este sábado, às 19h30, na sede do novo partido, situada na Rua Bulhão 3A, junto à estação Roma-Areeiro, em Lisboa. O momento vai ser aproveitado para divulgar o nome e o símbolo da formação, assim como o seu manifesto e programa político.
À VISÃO, Renata Cambra defende que esta nova organização é “uma necessidade no espectro político em Portugal”. “Com a submissão cada vez maior da esquerda parlamentar [PCP, Bloco de Esquerda e Livre] ao PS e ao regime, deixamos de ter uma alternativa anti-sistémica que defenda os interesses da classe trabalhadora e da juventude e que lute verdadeiramente contra o crescimento da extrema-direita, que durante muito tempo andaram a ignorar”, acrescenta.
A dirigente política define como meta a entrada na Assembleia da República “para amplificar” a voz do novo partido, mas sublinha que este é um projeto “com os pés sempre bem assentes na terra, consciente de que é fora do Parlamento, nas lutas sociais e sindicais, que conseguimos a correlação de forças necessária para arrancar vitórias”.
Renata Cambra critica o que tem vindo a ser “a política superficial e puramente populista, com medidas avulsas e pouco sérias” do seu antigo partido, que explica com o “desespero de eleger um deputado a qualquer custo”. Com a criação deste novo projeto, considera que a estrutura liderada por Gil Garcia fica “esvaziada de pessoas, conteúdo e princípios”, pois conta com “a maior parte dos quadros e militantes que eram do MAS”.
O novo projeto de Renata Cambra tem, agora, como prioridades “tornar esta nova organização conhecida e recolher as assinaturas necessárias para a sua legalização”. “Como parte desse esforço, teremos uma festa de lançamento no Norte do país, que está a ser preparada para o dia 12 de outubro. Ainda antes disso, vamos juntar-nos à manifestação pelo direito à habitação de dia 28 de setembro, com uma coluna nacional, no Porto, uma vez que este é um dos pontos mais importantes do nosso programa e, sem dúvida, um dos problemas mais urgentes que os trabalhadores e a juventude enfrentam e a que é preciso dar resposta”, refere, à VISÃO, a política.
A Fundação ”la Caixa” promove projetos de biomedicina e saúde através de vários concursos de investigação e inovação que fomentam as iniciativas mais promissoras e com maior impacto na sociedade em Portugal ou Espanha. Em 2017, com a colaboração do BPI e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), lançou em Portugal o Concurso de Inovação em Saúde CaixaImpulse e, um ano depois, o Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. Este último destina-se a projetos de investigação em biomedicina e saúde sediados.
O objetivo, mais uma vez, foi o de identificar e promover as iniciativas de excelência científica e com potencial impacto na sociedade, seja em investigação básica, clínica ou translacional, nas seguintes áreas temáticas: neurociências, oncologia, doenças cardiovasculares e metabólicas relacionadas, doenças infecciosas e tecnologias facilitadoras nas quatro áreas temáticas anteriores — nomeadamente microeletrónica e nanoeletrónica, ciências computacionais, megadados (big data), fotónica, nanotecnologia, biotecnologia, materiais avançados e sistemas de fabrico avançados.
Trata-se da convocatória filantrópica em biomedicina e saúde mais importante da Península Ibérica, pelo orçamento e pela qualidade e excelência dos projetos. Além disso, é o concurso em Portugal e Espanha que concede maior financiamento a cada um dos projetos individuais selecionados.
Ciência básica, clínica e translacional
Os projetos de investigação biomédica do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde são financiados num amplo espetro, incluindo projetos de ciência básica, clínica e translacional. Do que estamos realmente a falar?
Investigação básica: a investigação básica fornece conhecimentos para entender a natureza e as suas leis. Apesar de ser levada a cabo sem pensar nas finalidades práticas, estes conhecimentos fornecem os meios essenciais para responder a um grande número de problemas práticos importantes.
Investigação clínica: é a que se faz com seres humanos (ou com material de origem humana, como tecidos, amostras e fenómenos cognitivos) e em que a equipa de investigação (ou colegas) interage diretamente com seres humanos. Excluem-se desta definição os estudos in vitro feitos com tecidos humanos que não é possível relacionar com um indivíduo vivo. Inclui os ensaios clínicos, os estudos epidemiológicos e comportamentais, a investigação de resultados e a investigação de serviços de saúde.
Investigação translacional: promove a integração bidirecional da investigação básica e da investigação clínica, com o objetivo a longo prazo de melhorar a saúde das pessoas. Acelera o movimento entre a investigação básica e a investigação clínica, o que dá lugar a:
Estímulo a uma compreensão científica sólida da saúde e das doenças humanas;
Compreensão científica ou padrões de assistência novos e/ou melhorados, melhores resultados nos pacientes, implementação de boas práticas e um melhor estado de saúde das comunidades.
Apoios financeiros
Com um período máximo de execução de três anos, as propostas podem ser apresentadas sob a forma de:
> Projetos individuais: apresentados por uma única organização de investigação, podendo solicitar apoio financeiro até 500.000€.
> Projetos em consórcio de investigação: apresentados por, no mínimo, duas e, no máximo, cinco organizações de investigação, podendo solicitar apoio financeiro até 1.000.000€.
Um passo em frente na contenção da malária
Foram mais de 60 os projetos de instituições portuguesas financiados pelo concurso desde a primeira edição: Dos projetos finalizados até agora, destacamos um em particular: “O fígado pode revelar o calcanhar de Aquiles da malária”. A malária é uma doença infecciosa causada por um parasita conhecido como Plasmodium. Este parasita reproduz-se rapidamente no fígado dos mamíferos, mas não no fígado de outros vertebrados.
O projeto liderado por Maria Mota, na Fundação GIMM, em Lisboa, identificou uma proteína chave que poderá explicar porque é que isto acontece. Esta descoberta representa um passo em frente no desenvolvimento de novas terapias para conter uma doença que todos os anos ceifa a vida a 600 mil pessoas em todo o mundo.
Projetos portugueses – uma retrospetiva
Foram mais de 60 os projetos financiados no âmbito do CaixaResearch liderados por instituições portuguesas, nas mais variadas áreas. Deixamos alguns exemplos:
> Uma nova terapia para a insuficiência cardíaca Joaquim Adelino Correia Ferreira Leite Moreira, Universidade do Porto
> O fígado pode revelar o calcanhar de Aquiles da malária Maria M. Mota, Instituto de Medicina Molecular
> Como evitar e melhorar o tratamento das complicações pulmonares derivadas de reacções alérgicas Agostinho Albérico Rodrigues de Carvalho, Universidade do Minho
> Compreender as bases neurais da depressão para desenvolver novas terapias Rodrigo A. Cunha, Centro de Neurociências e Biologia Celular
> A grande incógnita da neurociência é a forma como percepcionamos o mundo Leopoldo Petreanu, Fundação Champalimaud
> Bactérias intestinais decidem pelo cérebro o que comer Carlos Vidal Ribeiro, Fundação Champalimaud
> Combater a obesidade para tratar a doença hepática gorda não alcoólica Rui Eduardo Mota Castro, Universidade de Lisboa
O sismo de agosto, às vezes impropriamente chamado terramoto em vez de maremoto, trouxe mais uma vez à estampa o importante tema dos sismos em Portugal. É certo e sabido, infelizmente não assumido por todos, que vivemos num território perigoso, situado nas margens tectónicas entre a Europa e a América e entre a Europa e África, mais complexo seria difícil. Ao longo da História da Terra, o território que hoje é Portugal sempre esteve em posição de grande relevância geológica. É por isto que somos tão geobiodiversos, que tudo muda (rochas, vegetação, paisagem…) em poucos quilómetros, em qualquer sentido. E, já agora, a diversidade cultural justifica-se pela mesma causa. Além da geologia, há outras razões para que sejamos um País perigoso, entre elas a exposição atlântica, onde localiza grande parte do urbanismo, e a orientação longitudinal do nosso território face à latitude, que impõe uma enorme variabilidade climática com as consequências que lhes estão associadas. Os algarvios mais atentos sabem do que estou a falar. A agravar o risco que esta natural perigosidade nos confere temos a incúria e irresponsabilidade dos políticos decisores, que aproveitaram o último sismo para fazer uma espécie de festa, porque nada aconteceu e por isso, só por isso, correu supostamente tudo bem.
Em matéria de sismos, por muito que a Ciência tenha avançado, as incertezas continuam a ser muito maiores do que as certezas, designadamente previsões, gestão e controlo, entre outras. Sabemos que ocorrências catastróficas já aconteceram e vão voltar a acontecer em todos os locais, regiões e países, pobres e ricos. Também temos a certeza de que os meios de ação disponíveis (humanos e materiais), em caso de ocorrência, são sempre mais escassos do que o necessário, e que, às vezes, não funcionam e não atuam como deviam. Em agosto, correu tudo muito bem porque, na verdade, não aconteceu nada. A grande incerteza é saber quando e onde?
O que fazer? Avaliar e assumir a perigosidade/risco, prevenir e, em caso de ocorrência, ação rápida e eficaz de forma articulada por parte de todos os agentes de proteção civil é a única resposta. Na verdade, os riscos naturais são cada vez menos naturais e cada vez mais induzidos pelos erros humanos e pela ausência de uma política de ordenamento do território que considere os fatores geológicos, climáticos e outros inerentes à física do território. Isto é, a componente induzida pelas diferentes intervenções do Homem (estradas, urbanizações, barragens, diques, desflorestação, agricultura, etc.) é bastante significativa.
Newsletter
Contrariamente ao que se possa imaginar, no futuro o panorama não será mais animador, antes pelo contrário, temos a certeza de ocorrências cada vez mais frequentes, imprevistas e intensas. É assim em todo o mundo e mais ainda em territórios como o português; todos os anos, os números falam por si, os prejuízos económicos são incalculáveis e o número de vítimas assustador. A urbanização do território, assente nos interesses imobiliários e na cultura que a engenharia tudo pode, desde que apareçam os milhões para pagar, leva à ocupação de zonas de grande sensibilidade ambiental e de maior perigosidade, como falésias, margens de rios, arribas, etc. Antes que seja tarde temos de agir com responsabilidade e arrepiar caminho para estarmos preparados coletiva e individualmente, o melhor possível, para quando a coisa acontecer.
É assim urgente aprofundar identificação e o estudo da perigosidade do território a diferentes escalas de modo que possamos calcular o risco. Cada cidadão deve ter consciência de que adquirir uma habitação no local A ou B pode ser substancialmente diferente perante a ocorrência e, no caso particular dos sismos, o tipo de construção em causa; na hora da escolha, esta informação deve ser seriamente considerada. Uma autarquia quando licencia uma urbanização tem de incluir na equação da decisão este tipo de dados. Em alguns tipos de ocorrências, a periodicidade é possível de ser estimada, por exemplo, as cheias de um rio; assim, além do mapeamento das linhas de água com risco de cheias, cada concelho deve conhecer a periodicidade do fenómeno de forma a possibilitar a melhor predição possível como a apoio a sistemas de alerta. Calcular o Índice de Risco, considerando as perdas (€), vulnerabilidade (%) e periodicidade (anos) é outra tarefa incontornável e prioritária. Por último, não menos importantes, devemos atender à prevenção (educação e formação, construção antissísmica, estabilização de taludes, vertentes e margens de rios, etc., planos de contingência) que é transversal a todo o tipo de risco e escala, e à correção dos efeitos, melhoria continua das intervenções face à experiência adquirida. Num País que extinguiu os Serviços Geológicos, ignora-se a importância, designadamente em matéria de segurança e soberania nacional, do tema, e tudo isto é uma mera utopia. É tão óbvio quanto absurdo que assim seja, infelizmente por cá, assobiamos para o lado, ouvimos banalidades e lugares-comuns dos responsáveis, e rapidamente vamos fazer de faz de conta, esquecemos, esperando que a Senhora de Fátima olhe por nós.
O otimismo diz-me que a fuga dos cinco reclusos de Vale dos Judeus pode gerar um debate alargado sobre aspetos importantes do nosso sistema prisional e penal e, talvez por causa do sol que inunda o quarto onde estou, deu-me para pensar que até dê para refletirmos sobre alguns aspetos perturbadores da nossa comunidade.
Por esta altura, e a reboque do muito falado incidente, ficámos a saber que as nossas prisões são especialmente seguras face às dos países com os quais gostamos de nos comparar. Ou seja, somos bons a manter quem está a cumprir pena dentro das prisões, cinco vezes melhores do que os nossos congéneres europeus.
Esta é a boa notícia. O resto não é novo nem é bom.
Newsletter
Comecemos por algo que devia deixar a comunidade especialmente preocupada e que, sabendo-se agora, deixou toda a gente muda e queda: as denúncias da Provedoria da Justiça ao Ministério Público sobre agressões e maus tratos a presos, várias documentadas por imagens de videovigilância.
Apesar da notícia do DN de 12 de junho de 2024 a relatar estes factos e de os sumários das visitas a essas prisões estarem publicados no site da Provedoria, vamos partir do princípio de que tudo isto passou despercebido. Agora que veio a propósito e se tornou público e notório, houve algum sobressalto? Houve horas e horas de debates sobre a altura das torres das prisões ou sobre quantas televisões se conseguia ver ao mesmo tempo, mas quantas houve sobre pessoas que estão à guarda do Estado serem agredidas e maltratadas? Uma fuga de uma prisão portuguesa é um acontecimento raríssimo, já sabemos, e merece dias e dias de conversa; agressões de guardas a reclusos, pelos vistos, são coisa que não preocupa ninguém nem merece um minuto de atenção. E que medidas se adotaram depois das várias condenações no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre as condições nas nossas prisões? E debates no Parlamento? E comentários nas televisões? Um vergonhoso nada.
Depois, como somos distraídos, fomos lembrados de que somos o país com a maior duração média de penas de prisão. Ou seja, é num dos mais seguros países do mundo que as pessoas passam mais tempo presas. Análises sobre o tema? Declarações dos nossos principais políticos, propostas em linha com os factos? Nada de nada.
Como é certo que alguma vez num futuro próximo seja tema termos das mais altas taxas de encarceramento de velhos e doentes, de as penas aplicadas serem excecionalmente longas face ao resto dos países europeus ou que quase 10% dos nossos reclusos o sejam por crimes ligados ao código rodoviário (mais uma notícia DN). Não resisto a escrever de novo: no país das prisões sobrelotadas, com más condições de salubridade, cerca de 10% de todos os reclusos em prisões portuguesas o são por crimes rodoviários, em que se destaca, calma, caro leitor, o número de presos por falta de carta de condução.
Na mesma linha, e olhando para o direito penal, as penas previstas são assustadoramente longas para variadíssimos crimes. Os ligados às drogas são um exemplo paradigmático. Sendo este um assunto que daria para dez números desta revista, podíamos acrescentar a utilização abusiva da prisão preventiva, a reduzida aplicação de penas alternativas às de encarceramento (domiciliária, pulseira eletrónica, etc.), bem como o pouco frequente recurso à pena de trabalho comunitário.
Claro que o nosso sistema prisional não podia deixar de refletir alguns aspetos da nossa comunidade, mas um dos mais gritantes é a pobreza. A quantidade enorme de pessoas que não podendo pagar as multas ficam presas mostra bem isso. Mais, sendo difícil quantificar, não custa imaginar que temos muita gente presa por deficiente apoio jurídico.
Os nossos responsáveis políticos sabem tudo isto e sabem-no há muito tempo. Já se ensaiaram umas tentativas de reforma prisional, mas não me recordo de um programa de um partido, de um plano governativo que olhasse de uma maneira integrada para tudo o que diz respeito ao que faz termos tanta gente presa e em tão más condições. Mas sendo verdade que se conhecem os problemas, esta vontade de não ver, este desprezo pela dignidade humana, pela decência, diz alguma coisa sobre quem nos governa, mas diz tudo sobre nós como comunidade.
Não queremos saber dos nossos irmãos mais fragilizados – os que estão presos são só mais um exemplo. Aqueles que, sim, temos de punir, mas que nos esquecemos de que são gente como nós, a quem não pode ser tirada dignidade e honra e que temos de ajudar a integrar na comunidade e não castigar e esquecer. Um sistema que só castiga é sintoma de uma sociedade doente.
Somos todos nós que preferimos olhar para o lado ou, se calhar, achamos mesmo que “estão a ter o que merecem”. Quem quer mesmo gastar dinheiro com bandidos quando há problemas no SNS, não é?
Numa altura em que os políticos não querem ou não sabem liderar e andam atrás das sondagens que lhes contam coisas sobre os nossos instintos primários, é praticamente impossível pensar que algo vai mudar.
Estava escrito nas estrelas: como a época de incêndios tinha sido fraquinha, era necessário potenciar ao máximo três dias de calor serôdio, mas intenso, em setembro, para pôr a máquina a andar. Esta bem podia ser uma tese conspirativa. Mas por muito que, ciclicamente, se aponte o dedo ao “negócio do fogo”, raramente se fala de política de ordenamento do território ou de medidas práticas de prevenção. Num incêndio paralelo, o do Orçamento do Estado, que se tornou a grande discussão política da rentrée, temos, como achas na fogueira, as propostas fiscais, correspondentes ao programa da AD. Mas as populações, devastadas pelos fogos de setembro, devem estar-se nas tintas para o “IRS jovem”. Um orçamento corajoso investiria menos na satisfação de grupos de pressão socioprofissionais, de lóbis sindicais ou empresariais e de clientelas eleitorais, dos reformados aos professores, e começaria a mexer na infraestrutura do País. Querem um governo reformista? Deem-me um governo que gaste uns milhões, muitos milhares de milhões, a recuperar o território destruído e as suas populações, a mudar a paisagem, a ordenar a floresta e a repovoar um País desertificado. E a aproveitar a água desperdiçada de uma terra que, em termos europeus, continua a ser das mais pluviosas.
Esta semana, mesmo sem ter entrado em qualquer “lancha” – ou nalgum carro de bombeiros… –, Luís Montenegro cancelou a agenda e reuniu um Conselho de Ministros extraordinário, para discutir medidas imediatas – e para essa reunião convidou Marcelo Rebelo de Sousa, procurando comprometer o PR e precavendo alguma nota dissonante que se ouvisse a partir de Belém. O incêndio paralelo do Orçamento prossegue. E Montenegro sabe que podem vir aí eleições antecipadas: esta dura prova dos fogos é um teste que não pode falhar.
Entretanto, ao exigir negociações e ao marcar linhas vermelhas, Pedro Nuno Santos pode estar a enredar-se numa armadilha orçamental. O PS diz que é quase impossível viabilizar um Orçamento que mantenha uma política fiscal “iníqua”, expressa, sobretudo, na proposta da AD para o IRC e para o IRS jovem. Precavendo o pior, Montenegro tem-se, de facto, movido em modo de pré-campanha. E o PS denuncia a trama, rasgando as vestes: “Estão a preparar-se para eleições!”
Newsletter
Sucede, porém, que só haverá eleições se o PS quiser. Aumentando o nível de exigência, na negociação, os socialistas arriscam-se a “ter de chumbar” o Orçamento e a… fazer a vontade ao Governo. É isso que querem? Não seria muito mais inteligente declarar vitória e retirar, seguindo uma célebre teoria de Kissinger, na crise do Vietname? Pedro Nuno podia lavar as mãos: “Este não é o nosso Orçamento, somos frontalmente contra e retiramo-nos das negociações. Vamos abster-nos, porque não temos nada que ver com isto – mas não daremos ao Governo o que ele quer, ou seja, eleições antecipadas. Vai ter de governar com esta maioria precária e o seu péssimo Orçamento.”
Neste momento, Pedro Nuno tem de decidir o que é melhor para o País: é preferível deixar o Governo aplicar um programa que o PS considera prejudicial ou o Orçamento é tão inaceitável que o País ganha mais em ter eleições? Mas, nestas coisas, um político costuma considerar, primeiro, o que é melhor para ele: o PS vai ganhar as eleições? E com que vantagem e margem de manobra, depois, no Parlamento?
Foi nos idos de 1992 que James Carville, um dos conselheiros de Bill Clinton na corrida à Casa Branca, criou a frase “It´s the economy, stupid!” (É a economia, estúpido!) como um dos três lemas internos da campanha que levaria à vitória contra George H. W. Bush. A frase virou um snowclone, uma frase que passa a ser usada em vários contextos diferentes e mesmo assim ser reconhecida de imediato. Ora, perante o que se vive por estes dias em Portugal (também por esse mundo fora), pelas imagens dantescas com que somos bombardeados hora a hora pelas televisões e pelo que vamos ouvindo de políticos, comentadores e especialistas, o que se me ocorre dizer é simplesmente, isto: É o aquecimento global, estúpido!
Ao longo da História, muitas tradições têm acreditado que alguma falha fatal na natureza humana nos tenta a procurar poderes que não sabemos como lidar. O mito grego de Faetonte conta a história de um rapaz que descobre ser filho de Hélio, o deus Sol. Desejando provar a sua origem divina, Faetonte exige o privilégio de conduzir o carro do Sol. Hélio avisa Faetonte de que nenhum humano pode controlar os cavalos celestes que puxam a carruagem solar. Mas Faetonte insiste, até que o deus Sol cede. Depois de subir orgulhosamente ao céu, Faetonte perde de facto o controlo do carro. O sol desvia-se da rota, queimando toda a vegetação, matando numerosos seres e ameaçando queimar a própria Terra. Zeus intervém e atinge Faetonte com um raio. O humano vaidoso cai do céu como uma estrela-cadente, ele próprio a arder. Os deuses retomam o controlo do céu e salvam o mundo.
Dois mil anos depois, quando a Revolução Industrial dava os primeiros passos e as máquinas começavam a substituir os humanos em numerosas tarefas, Johann Wolfgang von Goethe publicou um conto com uma lição de moral semelhante intitulada O Aprendiz de Feiticeiro. O poema de Goethe (mais tarde popularizado numa animação da Walt Disney protagonizada pelo Rato Mickey) conta a história de um velho feiticeiro que deixa um jovem aprendiz encarregado da sua oficina e lhe dá algumas tarefas para realizar na sua ausência, como ir buscar água ao rio. O aprendiz decide facilitar as coisas a si próprio e, usando um dos sortilégios do feiticeiro, encanta uma vassoura para que lhe vá buscar a água. Mas o aprendiz não sabe como parar a vassoura, que continua a ir buscar mais e mais água, ameaçando inundar a oficina. Em pânico, corta a vassoura encantada ao meio com um machado, apenas para ver cada uma das metades tornar-se outra vassoura. Quando o velho feiticeiro regressa, o aprendiz implora por ajuda: Os espíritos que invoquei / agora não consigo livrar-me deles. O feiticeiro quebra imediatamente o feitiço e para a inundação. A lição para o aprendiz – e para a humanidade – é clara: nunca invoques poderes que não consegues controlar.
O que é que as fábulas com moral do aprendiz e de Faetonte nos dizem do século XXI? Nós, humanos, recusámo-nos obviamente a dar ouvidos às suas advertências. Já desequilibrámos o clima da Terra e convocámos milhares de vassouras encantadas, drones, chatbots e outros espíritos algorítmicos capazes de escapar ao nosso controlo e de desencadear um dilúvio de consequências indesejadas.
Newsletter
O que devemos então fazer? As fábulas não oferecem respostas, a não ser esperar que algum deus ou feiticeiro nos salve.
O mito de Faetonte e o poema de Goethe não oferecem conselhos úteis porque interpretam mal a forma como os seres humanos ganham poder. Em ambas as fábulas, um único ser humano adquire um enorme poder, mas depois é corrompido pela arrogância e pela ganância. A conclusão é a de que a nossa psicologia individual defeituosa nos leva a abusar do poder. O que esta análise grosseira não percebe é que o poder humano nunca é o resultado de uma iniciativa individual. O poder resulta sempre da cooperação entre um grande número de seres humanos.
Por conseguinte, não é a nossa psicologia individual que nos leva a abusar do poder. Afinal, a par da ganância, da arrogância e da crueldade, os seres humanos são também capazes de sentir amor, compaixão, humildade e alegria. É verdade que, entre os piores membros da nossa espécie, a ganância e a crueldade reinam supremas e levam os maus atores a abusarem do poder. Mas por que razão as sociedades humanas escolheriam confiar o poder aos seus piores membros? Na sua maioria, os alemães em 1933, por exemplo, não eram psicopatas. Então porque votaram em Hitler?
A nossa tendência para invocar poderes que não podemos controlar não advém da psicologia individual, mas da forma única como a nossa espécie coopera em grande número. A humanidade ganha um enorme poder ao construir grandes redes de cooperação, mas o modo como as nossas redes são construídas predispõe-nos a usar o poder de maneira imprudente. Porque a maior parte das nossas redes foi construída e mantida através da disseminação de ficções, fantasias e ilusões em massa – sobre coisas que vão de vassouras encantadas a sistemas financeiros. O nosso problema é, portanto, um problema de rede. Mais especificamente ainda, é um problema de informação. Porque a informação é a cola que mantém as redes unidas e, quando as pessoas recebem má informação, é provável que tomem decisões más, por muito sábias e bondosas que sejam.
Nas últimas gerações, a humanidade registou o maior aumento de sempre, quer na quantidade como na velocidade da nossa produção de informação. Cada smartphone contém mais informação do que a antiga Biblioteca de Alexandria e permite ao seu proprietário ligar-se instantaneamente a milhares de milhões de outras pessoas em todo o mundo. No entanto, com toda esta informação a circular a velocidades estonteantes, a humanidade está mais perto do que nunca de se aniquilar a si mesma.
Já desequilibrámos o clima da Terra e convocámos drones, chatbots e outros espíritos algorítmicos capazes de escapar ao nosso controlo e de desencadear um dilúvio de consequências indesejadas
Apesar – ou talvez por causa – da nossa acumulação de dados, continuamos a lançar gases com efeito estufa para a atmosfera, a poluir rios e oceanos, a abater florestas, a destruir habitats inteiros, a levar inúmeras espécies à extinção e a pôr em risco as bases ecológicas da nossa própria espécie. Estamos também a produzir armas de destruição maciça cada vez mais potentes, desde bombas termonucleares aos vírus do dia do Juízo Final. Os nossos líderes não têm falta de informação sobre estes perigos mas, em vez de colaborarem para encontrar soluções, estão a aproximar-se de uma guerra mundial.
Será que ter ainda mais informação tornaria as coisas melhores – ou piores? Em breve descobriremos. Numerosas empresas e governos estão numa corrida para desenvolver a tecnologia de informação mais poderosa da História – a IA. Alguns empreendedores de renome, como o investidor norte-americano Marc Andreessen, acreditam que a IA irá finalmente resolver todos os problemas da humanidade. Em 6 de junho de 2023, Andreessen publicou um ensaio intitulado Why AI Will Save the World, salpicado de afirmações ousadas como “Estou aqui para trazer boas notícias: A IA não vai destruir o mundo e, de facto, irá salvá-lo.” Ele concluiu: “O desenvolvimento e a proliferação da IA – longe de ser um risco que devemos temer – é uma obrigação moral que temos para connosco, para com os nossos filhos e para com o nosso futuro.”
Outros são mais céticos. Não só filósofos e cientistas sociais mas também muitos dos principais especialistas em IA e empresários, como Yoshua Bengio, Geoffrey Hinton, Sam Altman, Elon Musk e Mustafa Suleyman, têm advertido o público de que a IA pode destruir a nossa civilização. Num inquérito realizado, em 2023, a 2778 investigadores de IA, mais de um terço atribuiu pelo menos 10% de hipóteses de a IA avançada conduzir a resultados tão maus como a extinção humana. Em 2023, cerca de 30 governos – incluindo os da China, dos Estados Unidos e do Reino Unido – assinaram a Declaração de Bletchley sobre IA, a qual reconhece que “existe potencial para danos graves, mesmo catastróficos, deliberados ou não intencionais, decorrentes das capacidades mais significativas destes modelos de IA”. Ao utilizar estes termos apocalípticos, peritos e governos não desejam evocar uma imagem Hollywoodiana de robôs rebeldes a correr pelas ruas e a disparar sobre pessoas. Tal cenário é improvável e apenas distrai as pessoas dos perigos reais.
A IA é uma ameaça sem precedentes para a humanidade porque é a primeira tecnologia da História capaz de tomar decisões e criar novas ideias por si só. Todas as invenções humanas anteriores deram poder aos humanos, porque, por mais possante que fosse uma nova ferramenta, as decisões sobre a sua utilização continuavam nas nossas mãos. As bombas nucleares não decidem sozinhas quem matar, nem podem aperfeiçoar-se ou inventar bombas ainda mais potentes. Em contrapartida, os drones autónomos podem decidir por si próprios quem matar, e a IA pode criar novos conceitos de bombas, estratégias militares sem precedentes e melhores sistemas de IA. A IA não é uma ferramenta – é um agente. A maior ameaça da IA é o facto de estarmos a convocar para a Terra inúmeros agentes poderosos, potencialmente mais inteligentes e imaginativos do que nós, os quais não compreendemos nem controlamos totalmente.
Tradicionalmente, o termo “IA” tem sido utilizado como acrónimo de Inteligência Artificial. Mas talvez seja melhor pensar nele como um acrónimo de Inteligência Alienígena. À medida que a IA evolui, torna-se menos artificial (no sentido de depender de projetos humanos) e mais alienígena. Muitas pessoas tentam medir e até definir a IA utilizando a métrica dos “níveis da inteligência humana”, e há um debate animado sobre quando podemos esperar que os sistemas de IA atinjam os “níveis da inteligência humana”. Esta métrica é profundamente enganadora. É como definir e avaliar os aviões segundo o padrão usado para medir o “nível de voo das aves”. A IA não está a progredir para uma inteligência de nível humano. Está a evoluir para um tipo de inteligência alienígena.
Mesmo agora, na fase embrionária da revolução da IA, os computadores já tomam decisões sobre nós – seja para conceder-nos uma hipoteca, contratar-nos para um emprego ou mandar-nos para a prisão. Entretanto, modelos de IA generativa como o GPT-4 já criam novos poemas, histórias e imagens. Esta tendência só irá aumentar e acelerar, dificultando ainda mais a compreensão das nossas vidas. Podemos confiar nos algoritmos computacionais para tomar decisões sensatas e criar um mundo melhor? É um risco muito maior do que confiar numa vassoura encantada para ir buscar água. E não é apenas em vidas humanas que estamos a apostar. A IA, sozinha, já é capaz de produzir arte e fazer descobertas científicas. Nas próximas décadas, é provável que obtenha capacidade de criar novas formas de vida, quer escrevendo código genético quer inventando um código inorgânico que anime entidades inorgânicas. A IA poderia, pois, alterar o curso da História, não só da nossa espécie mas da evolução de todas as formas de vida.
Mustafa Suleyman é um especialista mundial no campo da IA. É cofundador e foi diretor da DeepMind, uma das mais importantes empresas de IA do mundo, responsável pelo desenvolvimento do programa AlphaGo, entre outras iniciativas. O AlphaGo foi concebido para jogar o Go, um jogo de estratégia em que dois jogadores tentam derrotar-se um ao outro cercando e capturando território. Inventado na China antiga, o jogo é muito mais complexo do que o xadrez. Consequentemente, mesmo depois de computadores terem derrotado os campeões mundiais de xadrez, especialistas ainda acreditavam que os computadores nunca iriam superar a humanidade no Go.
Por isso é que quer os profissionais do Go como os peritos em informática ficaram surpreendidos, em março de 2016, quando o AlphaGo derrotou Lee Sedol, o campeão sul-coreano de Go. No seu livro de 2023, A Próxima Vaga, Suleyman descreve um dos momentos mais importantes do jogo – um momento que redefiniu a IA e é reconhecido em muitos círculos académicos e governamentais como um ponto de viragem crucial na História. Aconteceu durante o segundo jogo do encontro, a 10 de março de 2016.
“Depois… veio a jogada número 37”, escreve Suleyman. “Não fazia sentido. O AlphaGo tinha aparentemente estragado tudo, seguindo cegamente uma estratégia aparentemente perdedora que nenhum jogador profissional adotaria. Os comentadores do jogo transmitido em direto, dois profissionais do mais alto nível, disseram que foi uma ‘jogada muito estranha’ e pensaram que havia sido “um erro”. Foi tão invulgar que Sedol demorou 15 minutos a responder e até se afastou do tabuleiro para ir dar uma volta. Enquanto assistíamos da nossa sala de controlo, a tensão era irreal. No entanto, à medida que o final do jogo se aproximava, aquela jogada ‘errada’ revelou-se fundamental. O AlphaGo ganhou novamente. A estratégia do Go estava a ser reescrita diante dos nossos olhos. A nossa IA tinha descoberto ideias que não ocorreram aos jogadores mais brilhantes em milhares de anos.”
A jogada 37 é um emblema da revolução da IA por dois motivos. Em primeiro lugar, demonstrou a natureza estranha da IA. Na Ásia do Leste, o Go é considerado muito mais do que um jogo: é uma tradição cultural preciosa. Durante mais de 2500 anos, dezenas de milhões de pessoas jogaram Go e desenvolveram-se verdadeiras escolas de pensamento em torno deste jogo, defendendo diferentes estratégias e filosofias. Contudo, durante todos estes milénios, as mentes humanas exploraram apenas certas áreas da paisagem do Go. Outras áreas foram deixadas intocadas, porque as mentes humanas simplesmente não pensaram em aventurar-se nelas. A IA, livre das limitações das mentes humanas, descobriu e explorou estas áreas anteriormente ocultas.
Em segundo lugar, a jogada 37 demonstrou a incompreensibilidade da IA. Mesmo depois de o AlphaGo ter jogado para alcançar a vitória, Suleyman e a sua equipa não conseguiram explicar como é o que AlphaGo decidiu jogar. Mesmo que um tribunal tivesse ordenado à DeepMind que desse uma explicação a Lee Sedol, ninguém poderia cumprir essa ordem. Escreveu Suleyman: “Na IA, as redes neurais que avançam para a autonomia não são, atualmente, explicáveis. Não se pode acompanhar alguém através do processo de decisão para explicar exatamente o que levou um algoritmo a produzir uma previsão específica. Os engenheiros não podem espreitar debaixo do capô e explicar fácil e minuciosamente a causa de algo que aconteceu. O GPT-4, o AlphaGo e outros são caixas negras, os seus resultados e decisões baseiam-se em cadeias opacas e impossivelmente intricadas de sinais minuciosos.
A ascensão de uma inteligência alienígena insondável representa uma ameaça para todos os seres humanos, e representa uma ameaça particular para a democracia. Se cada vez mais decisões sobre a vida das pessoas forem tomadas numa caixa negra, de modo a que os eleitores não as possam compreender e contestar, a democracia deixa de funcionar. O que acontece, em particular, quando decisões cruciais, não só sobre vidas individuais, mas também sobre questões coletivas como as taxas de juro da Reserva Federal são tomadas por algoritmos impenetráveis? Os eleitores humanos podem continuar a escolher um Presidente humano, mas isso não seria apenas uma cerimónia vazia. Ainda hoje, apenas uma fração da humanidade entende verdadeiramente o sistema financeiro. Um inquérito de 2014 aos deputados britânicos – responsáveis por regular um dos centros financeiros mais importantes do mundo – revelou que apenas 12% estavam bem ao corrente de que é criado dinheiro novo quando os bancos concedem empréstimos. Este facto é um dos princípios mais básicos do sistema financeiro moderno. Tal como a crise financeira de 2007-2008 indicou, alguns dispositivos e princípios financeiros complexos só eram inteligíveis para um pequeno número de peritos financeiros. O que acontecerá à democracia quando os sistemas de IA criarem dispositivos financeiros ainda mais complexos e quando o número de humanos que entendem o sistema financeiro cair para zero?
Traduzindo a fábula moral de Goethe para a linguagem das finanças modernas, imagine o seguinte cenário: um aprendiz de Wall Street farto do trabalho penoso na oficina financeira cria uma IA chamada Broomstick [“Vassoura”], injeta-lhe um milhão de dólares em capital inicial e ordena-lhe que produza mais dinheiro. Para a IA, as finanças são o recreio ideal, por se tratar de um domínio puramente informativo e matemático. Os modelos de IA continuam a ter dificuldade em conduzir um carro de forma autónoma, porque isso exige movimento e interação do mundo físico confuso, onde é difícil definir “sucesso”. Pelo contrário, para efetuar transações financeiras, a IA só precisa de lidar com dados, e pode facilmente medir o seu sucesso matematicamente em dólares, euros ou libras. Mais dólares – missão cumprida.
Em busca de mais dólares, a Broomstick concebe não apenas novas estratégias de investimento mas também inventa dispositivos financeiros inteiramente novos que nenhum ser humano jamais imaginou. Durante milhares de anos, as mentes humanas exploraram apenas algumas áreas do panorama financeiro. Inventaram o dinheiro, os cheques, as obrigações, ações, os ETF, as CDO e outros elementos de feitiçaria financeira. Mas muitas áreas financeiras foram deixadas intocadas porque as mentes humanas simplesmente não pensaram em aventurar-se nelas. A Broomstick, livre das limitações das mentes humanas, descobre e explora estas áreas anteriormente escondidas, fazendo movimentos financeiros que são o equivalente à jogada 37 do AlphaGo.
Durante alguns anos, enquanto a Broomstick dirige a humanidade para um território financeiro virgem, tudo parece maravilhoso. Os mercados estão em alta, o dinheiro entra sem esforço e todos estão felizes. Depois, vem um crash ainda maior do que o de 1929 ou 2008. Mas nenhum ser humano – seja Presidente, banqueiro ou cidadão – sabe o que o causou e o que pode ser feito para o evitar. Como nem deus nem feiticeiro aparecem para salvar o sistema financeiro, governos desesperados pedem ajuda à única entidade capaz de perceber o que está a acontecer – a Broomstick. A IA faz várias recomendações políticas; muito mais audaciosas do que flexibilização quantitativa – e também muito mais opacas. A Broomstick promete que estas políticas serão a solução, mas os políticos humanos – incapazes de entender a lógica por detrás das recomendações da Broomstick – receiam que elas possam desfazer completamente o tecido financeiro e até social do mundo. Deveriam eles dar ouvidos à IA?
Os computadores não são ainda suficientemente poderosos para escapar totalmente ao nosso controlo ou destruir sozinhos a civilização humana. Enquanto a humanidade permanecer unida, podemos construir instituições para regular a IA, seja no domínio das finanças ou da guerra. Infelizmente, a humanidade nunca esteve unida. Fomos sempre atormentados por maus atores, bem como por desentendimentos entre bons atores. A ascensão da IA representa um perigo existencial para a humanidade, não por causa da malevolência dos computadores mas por causa das nossas próprias falhas.
Assim, um ditador paranoico pode dar poder ilimitado a uma IA falível, incluindo o poder de lançar ataques nucleares. Se a IA cometer um erro ou começar a perseguir um objetivo inesperado, o resultado poderá ser catastrófico, e não apenas para esse país. Do mesmo modo, terroristas podem utilizar a IA para instigar uma pandemia global. Os próprios terroristas podem ter poucos conhecimentos de epidemiologia, mas a IA poderia sintetizar para eles um novo agente patogénico, encomendá-lo a laboratórios comerciais ou imprimi-lo em impressoras biológicas 3D, e conceber a melhor estratégia para o propagar pelo mundo, através de aeroportos ou cadeias de abastecimento alimentar. E se a IA sintetizar um vírus tão mortífero como o Ébola, tão contagioso como a Covid-19 e de ação tão lenta como o VIH? Quando as primeiras vítimas começarem a morrer e o mundo for alertado para o perigo, a maioria das pessoas na Terra poderá já ter sido infetada.
A civilização humana também pode ser devastada por armas de destruição social maciça, como histórias que minam os nossos laços sociais. Uma IA desenvolvida num país poderia ser utilizada para desencadear um dilúvio de notícias falsas, dinheiro falso e seres humanos falsos, para que as pessoas de muitos outros países percam a capacidade de confiar em qualquer coisa ou em alguém.
Muitas sociedades – tanto democracias como ditaduras – podem agir de forma responsável para regular tais utilizações da IA, reprimir os maus atores e refrear as ambições perigosas dos seus próprios governantes e fanáticos. Mas, mesmo que um punhado de sociedades não o faça, isso poderá ser suficiente para pôr em perigo toda a humanidade. As alterações climáticas podem devastar até mesmo os países que adotem excelentes regulamentações ambientais, porque se trata de um problema global e não nacional. Também a IA é um problema global. Os países seriam ingénuos se acreditassem que, regulamentando a IA de maneira sensata dentro das suas próprias fronteiras, essa regulamentação os protegeria dos piores resultados da revolução da IA.
A IA é uma ameaça sem precedentes para a humanidade porque é a primeira tecnologia da História capaz de tomar decisões e criar novas ideias por si só
Assim, para compreender a nova política computacional não basta examinar a forma como sociedades distintas poderão reagir à IA. Temos também de considerar a forma como a IA pode alterar as relações entre as sociedades a nível global.
No século XVI, quando os conquistadores espanhóis, portugueses e holandeses construíam os primeiros impérios globais da História, chegaram com navios à vela, cavalos e pólvora. Quando os britânicos, os russos e os japoneses tentaram a hegemonia nos séculos XIX e XX, confiaram em navios a vapor, locomotivas e metralhadoras. No século XXI, para dominar uma colónia, já não é preciso enviar canhoneiras. É preciso eliminar os dados. Algumas empresas ou governos que recolhem os dados do mundo podem transformar o resto do globo em colónias de dados – territórios que controlam não com força militar ostensiva mas com informação.
Imagine uma situação – digamos, daqui a 20 anos – em que alguém em Pequim ou São Francisco possui toda a história pessoal de cada um dos políticos, jornalistas, coronéis e CEO do seu país: todas as mensagens de texto que enviaram, todas as pesquisas que fizeram na Internet, todas as doenças que sofreram, todos os encontros sexuais que tiveram, todas as piadas que contaram, todos os subornos que aceitaram. Continuaria a viver num país independente ou estaria agora a viver numa colónia de dados? O que acontece quando o seu país se encontra totalmente dependente de infraestruturas digitais e de sistemas alimentados por IA sobre os quais não tem qualquer controlo efetivo?
No domínio económico, os impérios anteriores baseavam-se em recursos materiais como a terra, o algodão e o petróleo. Este facto limitou a capacidade do império de concentrar a riqueza económica e o poder político num único lugar. A física e a geologia não permitem que todas as terras, todo o algodão ou todo o petróleo do mundo sejam transferidos para um só país. A situação é diferente com os novos impérios da informação. Os dados podem mover-se à velocidade da luz e os algoritmos não ocupam muito espaço. Consequentemente, o poder algorítmico do mundo pode ser concentrado num único hub. Os engenheiros de um único país podem escrever o código e controlar as chaves de todos os algoritmos cruciais que fazem funcionar o mundo inteiro.
A IA e a automatização representam, portanto, um desafio particular para os países em desenvolvimento mais pobres. Numa economia global impulsionada pela IA, os líderes digitais reclamam a maior parte dos ganhos e podem utilizar a sua riqueza para requalificar a sua força de trabalho e lucrar ainda mais. Entretanto, o valor dos trabalhadores não qualificados nos países deixados para trás diminuirá, fazendo com que fiquem ainda mais para trás. O resultado pode ser a criação de muitos novos empregos e uma imensa riqueza em São Francisco e Xangai, enquanto muitas outras partes do mundo enfrentam a ruína económica. De acordo com a empresa de consultoria global PricewaterhouseCoopers, espera-se que a IA acrescente 15,7 biliões de dólares à economia mundial até 2030. Mas se as tendência atuais se mantiverem, prevê-se que a China e a América do Norte – as duas principais superpotências da IA – fiquem com 70% desse dinheiro.
Durante a Guerra Fria, a Cortina de Ferro foi, em muitos lugares, literalmente feita de metal: arame farpado separava um país do outro. Atualmente, o mundo está cada vez mais dividido pela Silicon Curtain. O código do seu smartphone determina em que lado desta cortina vive, que algoritmos gerem a sua vida, quem controla a sua atenção e para onde fluem os seus dados.
Está a tornar-se difícil aceder à informação através da Silicon Curtain, por exemplo, entre a China e os EUA, ou entre a Rússia e a UE. Além disso, os dois lados funcionam cada vez mais em redes digitais diferentes, utilizando códigos computacionais diferentes. Na China, não se pode utilizar Google ou Facebook, e não se pode aceder à Wikipédia. Nos EUA, poucas pessoas utilizam WeChat, Baidu ou Tencent. Mais importante ainda, as duas esferas digitais não são imagens espelhadas uma da outra. O Baidu não é o Google chinês, o Alibaba não é a Amazon chinesa. Têm objetivos diferentes na vida das pessoas. Estas diferenças influenciam grande parte do mundo, uma vez que a maioria dos países depende mais do software chinês e norte-americano do que da tecnologia local.
Os Estados Unidos também pressionam os seus aliados e clientes para evitarem o hardware chinês, como a rede 5G da Huawei. A Administração Trump bloqueou uma tentativa da empresa Broadcom, de Singapura, de comprar o principal produtor norte-americano de chips de computadores, a Qualcomm. Temia-se que estrangeiros pudessem inserir backdoors nos chips ou que impedissem o governo dos EUA de ali introduzir as suas próprias backdoors. Tanto a Administração Trump como a Administração Biden impuseram limites estritos ao comércio de chips de computação de alta performance necessários ao desenvolvimento da IA. As empresas norte-americanas estão agora proibidas de exportar estes chips para a China. Embora, a curto prazo, isto prejudique a China na corrida à IA, a longo prazo, empurra a China para o desenvolvimento de uma esfera digital completamente separada, que será distinta da esfera digital norte-americana, até mesmo nas suas mais pequenas Plataformas Comuns.
As suas esferas digitais podem assim afastar-se cada vez mais.
Durante séculos, as novas tecnologias de informação alimentaram o processo de globalização e aproximaram as pessoas de todo o mundo. Paradoxalmente, a tecnologia da informação é hoje tão poderosa que tem o potencial de dividir a humanidade, encerrando pessoas diferentes em casulos de informação separados, pondo fim à ideia de uma realidade humana única e partilhada. Durante décadas, a metáfora principal do mundo foi a web. A metáfora principal das próximas décadas poderá ser o casulo.
Embora a China e os Estados Unidos se posicionem hoje na linha da frente da corrida à IA, não estão sozinhos. Outros países ou blocos, como a UE, a Índia, o Brasil e a Rússia podem tentar criar os seus próprios casulos digitais, cada um deles influenciado por diferentes tradições políticas, culturais e religiosas. Em vez de permanecer dividido entre apenas dois impérios globais, o mundo poderá ficar dividido entre uma dúzia de impérios.
Quanto mais os novos impérios competirem uns contra os outros, maior será o perigo de conflito armado. A Guerra Fria entre os EUA e a URSS nunca se transformou num confronto militar direto, em grande parte graças à doutrina de Destruição Mútua Assegurada. Mas o perigo de escalada na era da IA é maior, porque a guerra cibernética é inerentemente diferente da guerra nuclear.
As armas cibernéticas podem derrubar a rede elétrica de um país, mas também podem ser utilizadas para destruir centros de investigação secretos, bloquear um sensor inimigo, inflamar um escândalo político, manipular eleições ou piratear um único smartphone. E podem fazer isso tudo furtivamente. Não anunciam a sua presença com uma nuvem na forma de cogumelo e uma tempestade de fogo, nem deixam um rasto visível da plataforma de lançamento ao alvo. Consequentemente, por vezes é difícil saber se ocorreu um ataque ou quem o lançou. É, pois, enorme a tentação de iniciar uma guerra cibernética limitada, assim como a tentação de a agravar.
Uma segunda diferença crucial diz respeito à previsibilidade. A Guerra Fria foi uma espécie de xadrez hiper-racional, e a certeza da destruição em caso de conflito nuclear era tão grande que o desejo de iniciar uma guerra era correspondentemente pequeno. A guerra cibernética carece desta certeza. Ninguém sabe ao certo onde cada lado colocou as suas bombas lógicas, cavalos de Troia e malware. Ninguém pode ter a certeza de que as suas armas iriam realmente funcionar quando solicitadas. Os mísseis chineses disparariam quando a ordem fosse dada, ou, talvez, os norte-americanos já os tivessem infiltrado, assim como à cadeia de comando? Será que os porta-aviões norte-americanos funcionariam como esperado ou, talvez, se desligassem misteriosamente e navegassem em círculos?
Esta incerteza mina a doutrina da Destruição Mútua Assegurada. Um lado pode convencer-se – com ou sem razão – de que tem capacidade para lançar um primeiro ataque bem-sucedido e evitar retaliações em massa. Pior ainda, se um dos lados pensar que tem essa oportunidade, a tentação de lançar um primeiro ataque poderá tornar-se irresistível, porque nunca se sabe quanto tempo a janela de oportunidade se manterá aberta. A teoria dos jogos postula que a situação mais perigosa numa corrida aos armamentos é quando um dos lados sente que tem uma vantagem, mas que essa vantagem está a desaparecer.
Mesmo que a humanidade evite o pior cenário de uma guerra mundial, a ascensão de novos impérios digitais ainda poderá pôr em perigo a liberdade e a prosperidade de milhares de milhões de pessoas. Os impérios industriais dos séculos XIX e XX exploraram e reprimiram as suas colónias, e seria imprudente esperar que os novos impérios digitais se comportassem muito melhor. Além disso, se o mundo estiver dividido em impérios rivais, é pouco provável que a humanidade coopere eficazmente para superar a crise ecológica ou para regular a IA e outras tecnologias disruptivas como a bioengenharia.
A divisão do mundo em impérios digitais rivais enquadra-se na visão política de muitos líderes convictos de que o mundo é uma selva, que a paz relativa das últimas décadas tem sido uma ilusão e que a única escolha real é desempenhar o papel de predador ou presa.
Perante esta escolha, a maioria dos líderes preferiria entrar para a História como predadores e acrescentar os seus nomes à lista sombria de conquistadores que os pobres alunos são condenados a memorizar para os seus exames de História. Contudo, devemos lembrar a estes líderes que existe um novo predador alfa na selva. Se a humanidade não encontrar maneira de cooperar e proteger os nossos interesses comuns, todos seremos presas fáceis da IA.
Extraído e adaptado do prefácio e dos capítulos 10 e 11 de Nexus: História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial, de Yuval Noah Harari (Edição Elsinore, setembro 2024).
Biblioteca essencial
Historiador e filósofo, aos 48 anos, o israelita Yuval Noah Harari é citado pelos principais líderes políticos. Tem o condão de escrever sobre as grandes questões do nosso tempo, numa linguagem clara e acessível. E também de vender milhões de livros em todo o mundo
Nexus No seu novo livro, Harari analisa o fluxo de informação ao longo da História. A tradução portuguesa estará disponível a partir da próxima segunda, 23 — Elsinore, 560 págs., €28,45
livro Sapiens
Sapiens 2014 Primeiro best-seller do autor, explora o passado da espécie humana
Homo Deus 2016 Um livro sobre o futuro e os desafios tecnológicos da Humanidade
21 Lições para o Século XXI 2018 Os temas do momento: das democracias liberais às alterações climáticas
Os primeiros esforços de exibição de arte moderna e contemporânea portuguesa com a marca da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) começaram em lugares que hoje nos podem parecer bem surpreendentes. Desde início que o apoio às artes plásticas sintonizadas com a atualidade era prioritário para a instituição que nasceu em Lisboa, em 1956, e funcionaria, a partir daí, como uma espécie de ministério da cultura muito mais atento à contemporaneidade e aos artistas emergentes do que a esgotada e passadista máquina oficial do Estado Novo.
Em território nacional, as primeiras exposições de uma ainda embrionária coleção de arte moderna da FCG, que se tinha começado a formar em 1958, aconteceram, em 1962, nos Açores (Angra do Heroísmo, Ponta Delgada e Horta) e na Madeira (Funchal). Aí, foram mostradas 45 obras de 45 artistas nacionais em atividade, sendo que muitas delas não eram figurativas e apostavam numa abstração que ainda era (muito) estranha à grande generalidade do público português.
O primeiro dia Inauguração, a 20 de julho de 1983, do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, sonhado por José de Azeredo Perdigão e então dirigido por José Sommer Ribeiro. Foi o primeiro museu nacional a dedicar-se à arte contemporânea portuguesa do século XX Fotos: Arquivos Gulbenkian
Já uma das primeiras grandes exposições internacionais teve lugar na capital do Iraque, Bagdade, em novembro de 1966. Exhibition of Works of Contemporary Art Belonging to the Calouste Gulbenkian Foundation incluía já 70 obras (não só de artistas portugueses mas também de alguns estrangeiros). Um ano antes, de forma não tão surpreendente, obras da coleção tinham saído pela primeira vez do País para serem expostas no Rio de Janeiro, no âmbito das comemorações dos quatro séculos da cidade brasileira.
Newsletter
Mas como tinha esta fundação, criada por um milionário arménio, Calouste Sarkis Gulbenkian, pioneiro nos negócios de petróleo a partir do Médio Oriente, começado, do nada, a construir uma coleção cheia de ambições? Para melhor responder a essa pergunta é importante olhar para o contexto nacional da época. E o que encontramos é um enorme vazio. António Ferro, que dirigiu o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), entre 1945 e 1950, e tinha tentando, dentro dos ditames do Estado Novo, criar uma imagem “moderna” (mesmo que recriando as suas tradições) de Portugal, morreu em 1956, aos 61 anos. No final dos anos 50 e na década de 60, período pujante, cheio de criatividade, novidade e transgressões em vários géneros artísticos um pouco por todo o mundo ocidental, Portugal apresentava-se “orgulhosamente só” e alheado.
A génese de uma outra coleção
“A democratização vivida” No Museu Soares dos Reis recorda-se o nascimento, no Porto, em 1974, do Centro de Arte Contemporânea
Até 29 de dezembro, no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, pode perceber-se como começou uma outra coleção fundamental de arte contemporânea portuguesa – a de Serralves. Na exposição CAC – 50 anos: A Democratização Vivida recuamos aos dias imediatamente posteriores ao 25 de Abril de 1974. E foi logo no dia 10 de junho desse ano revolucionário que várias figuras da cultura do Porto, incluindo diversos artistas, organizaram um simbólico “enterro do Museu Soares dos Reis”. Empunhavam-se cartazes que diziam “O museu morreu, viva um museu novo”, ainda sem noção do alcance desse gesto provocador e radical de rutura. Na performance participava gente ligada a lugares culturais da cidade como a Cooperativa Árvore, o Teatro Experimental do Porto, a Seiva Trupe ou o Cineclube do Porto. Mostrando que não era só um grito inconsequente resultante da liberdade recém-adquirida, dois anos depois nascia o CAC – Centro de Arte Contemporânea, instalando-se, precisamente, no vetusto Museu Soares dos Reis. Para os artistas da cidade, houve todo um novo horizonte de possibilidades. O curador e crítico de arte Fernando Pernes teve um papel preponderante na história do CAC, que durou até 1980, expondo e apoiando dezenas de artistas, já conhecidos ou emergentes. Esse trabalho foi a semente do futuro Museu de Arte Contemporânea de Serralves (e da sua coleção), que Fernando Pernes pensou e dirigiu, centrado na arte portuguesa dos últimos 50 anos.
Até havia, em Lisboa, um Museu Nacional de Arte Contemporânea, fundado logo em 1911, no Chiado, mas olhar para ele no final dos anos 50 dá-nos uma boa ideia do descalabro de algo a que se pudesse chamar política cultural do Estado sintonizada com o tempo que se vivia. Este excerto de um texto da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, num álbum editado em 1994 por ocasião da reabertura do Museu do Chiado (estava encerrado desde 1988, vítima de uma degradação contínua) dá bem conta do nível de desfasamento entre o nome da instituição (que mantinha “arte contemporânea” na denominação) e a sua realidade: “Diretor de 1959 até à sua morte [em 1967], Eduardo Malta empenhou-se com tenebrosa deliberação em destruir tudo o que antes penosamente se realizara. Os modernistas foram erradicados, as portas fecharam-se a qualquer investigação histórica que exigisse o estudo das coleções e, naturalmente, foi criada uma sala Eduardo Malta, centralizada pelo retrato de sua mulher que, prestimosamente, doara ao Museu.”
Era como se dois universos coexistissem cada vez mais, e irremediavelmente, afastados: uma produção artística e um País que, a muito custo, desafiava o statu quo e um regime caduco que, em breve, se concentraria em alimentar uma Guerra Colonial. E foi nesse contexto que se sonhou com uma coleção que respeitava os artistas contemporâneos e olhava, definitivamente, para o futuro.
Às compras
O catálogo da exposição Histórias de uma Coleção, que em 2023 ocupou a principal galeria de exposições da FCG, enquanto não terminavam as obras do renovado Centro de Arte Moderna (CAM) tornou-se uma excelente fonte para conhecer as origens do maior acervo de arte moderna e contemporânea do País – com 11 700 obras, incluindo algumas de artistas estrangeiros (especificamente um importante núcleo de arte britânica).
“Vanitas” Paula Rego sempre teve uma ligação muito próxima com a Fundação Gulbenkian, de que foi bolseira mais do que uma vez. Este tríptico resultou de uma encomenda feita pela FCG à artista, em 2006 Foto: CAM Centro de Arte Moderna Gulbenkian
Pode dizer-se que tudo começou quando, em 1960, o Serviço de Belas-Artes (SBA) passou a ser autónomo, dirigido por Artur Nobre de Gusmão. A estratégia passava não só pela compra de peças recentes de artistas portugueses no frágil circuito nacional de exposições em galerias e outras instituições como também apoiar diretamente os artistas, concedendo-lhes “bolsas de estudo no País e de aperfeiçoamento no País e no estrangeiro.” Nessa altura, não era ainda claro que a coleção que estava a ser construída viesse a dar origem a um museu próprio. Num relatório assinado pelo presidente José de Azeredo Perdigão sobre os primeiros quatro anos de história da FCG podia ler-se: “Há ainda que ponderar o destino que deve ser dado às espécies adquiridas. Em primeiro lugar, está indicado que com elas se forme o núcleo base das projetadas exposições itinerantes. Em segundo lugar, poderão ser aproveitadas para enriquecer os museus nacionais por via de doação ou depósito.” A ideia de construção de um Centro de Arte Moderna perto da sede da Fundação só começaria a tomar forma nos anos 70: em 1979, seria formalizado o projeto de construção de um edifício e, em 20 de julho de 1983, abriria, finalmente, o Centro de Arte Moderna.
Desses primeiros tempos, em que o SBA comprava, sobretudo, obras em exposições, datam as aquisições, por exemplo, de quadros de Marcelino Vespeira e Jorge Martins (que estiveram expostos na Galeria Diário de Notícias, em 1962). Ainda antes disso, as primeiras compras aconteceram, em 1958, numa exposição patente na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA): quadros de, entre outros, Emmerico Nunes, Manuel Bentes, Mily Possoz e os então muito jovens António Areal, Rui Filipe e Nuno de Siqueira estiveram na génese da atual Coleção do Centro de Arte Moderna.
A pala de Kuma No novo edifício do CAM, este é o ex-líbris, criando um percurso entre o novo jardim e o renovado museu
Como sempre acontece nestas (e noutras) matérias, o acaso teve, muitas vezes, um papel a desempenhar. O tal vazio institucional nas preocupações com a arte contemporânea facilitava, de algum modo, a tarefa, mas a FCG não atuava sempre de costas voltadas para o Estado. Prova disso é a grande exposição Arte Portuguesa – Pintura e Escultura do Naturalismo aos Nossos Dias, comissariada por Fernando de Azevedo e coorganizada pela FCG e o SNI, e que esteve patente, em 1967 e 1968, em Bruxelas, Paris e Madrid. Na capital francesa, através da delegação parisiense da FCG, tinha sido negociada diretamente, e com o envolvimento pessoal de José de Azeredo Perdigão, a compra de obras de artistas já então referenciais na arte portuguesa do século XX: Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) e Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992). Esse foi um passo importante para a solidez e prestígio da coleção do CAM. “Nenhum dos artistas estava representado na Coleção”, lê-se no texto de Patrícia Rosas no já citado catálogo de 2023. “Estas compras marcariam o início da preocupação da fundação em reunir um grande número de obras destes dois grandes nomes, que atualmente têm uma presença significativa no acervo: Amadeo está representado com 200 pinturas e desenhos e Vieira da Silva com 172 pinturas e gravuras.”
A chegada da coleção Jorge de Brito
Assim que passou a ser claro o objetivo de criar uma casa para acolher e mostrar o acervo da coleção, também se sentiu necessidade de lhe dar ainda mais consistência e relevância. E uma excelente oportunidade surgiu no final da década de 1970. José de Azeredo Perdigão acreditou que seria possível integrar, de alguma maneira, as obras do colecionador Jorge de Brito no futuro CAM. As conversações começaram em 1979, conheceram-se no início de 1980 e as negociações foram demoradas. Grande colecionador de arte de várias épocas e homem de negócios, Jorge de Brito chegou a alimentar a ideia de criar ele próprio uma fundação que pudesse resultar num museu de arte moderna inédito em Portugal. O 25 de Abril de 1974 trocou-lhe as voltas e, de algum modo, facilitou no futuro os intentos da FCG. Na sequência de um processo que lhe foi movido pelo Estado, por operações financeiras ligadas à fundação do Banco Intercontinental Português, a sua coleção foi arrestada. O facto de precisar de recuperar muito do capital perdido e a consciência de que a FCG poderia ser o meio mais eficaz de salvaguardar a sua coleção levaram a que Jorge Brito fosse cada vez mais seduzido pelos intentos de Azeredo Perdigão.
“Brooklyn N.Y.” e “Óleo 105” Estes quadros de Emmerico Nunes e Marcelino Vespeira, de 1939 e 1957, foram das primeiras obras compradas para a Coleção CAM/FCG Foto: CAM Centro de Arte Moderna Gulbenkian
A resolução do processo judicial, quanto ao arresto da coleção, aconteceu pouco tempo antes da inauguração do CAM e obrigou a negociações em contrarrelógio. José Sommer Ribeiro (diretor do CAM entre 1983 e 1994) insistia para que houvesse um acordo a tempo da abertura do Centro de Arte Moderna e, de facto, as obras de arte compradas a Jorge de Brito entrariam no novo edifício na primeira semana de junho de 1983 – a inauguração seria a 20 de julho. Jorge de Brito sentia a necessidade de vender, mas também não queria separar-se de algumas das suas peças, por isso o acordo final foi complexo, com muitos avanços e recuos. Satisfeito com o resultado final do CAM, Jorge de Brito viria mesmo a doar à Gulbenkian, posteriormente, obras que antes tinha decidido reservar para si (por exemplo, duas pinturas de Almada Negreiros realizadas para as paredes do café A Brasileira). Obras de artistas como Dominguez Alvarez, Mário Eloy, Júlio Pomar, Júlio Resende, Eduardo Viana, Abel Manta, Costa Pinheiro e Jorge Martins, entre outros, reforçaram assim a coleção do CAM a tempo de serem exibidas. “Reforçava-se deste modo, substancialmente, a representação de vários artistas, dos quais a coleção do novo centro dispunha já de um reduzido número de peças, e supriam-se importantes lacunas entre os artistas portuguesas, não só com trabalhos sobre tela mas também com mais de duas centenas de desenhos ou pinturas sobre papel”, sublinhou a curadora e conservadora do CAM Ana Vasconcelos no catálogo da exposição Histórias de uma Coleção.
Nos anos de democracia, o objetivo do CAM atualizou-se mas, em liberdade, e com Portugal orgulhosamente aberto ao mundo, manteve-se ligado ao espírito inicial. As palavras de José de Azeredo Perdigão (que foi “funcionário nº 1” e presidente da FCG até à sua morte, em 1993), num relatório referente aos primeiros anos, ainda na década de 50, podem hoje soar algo datadas, mas mantêm o seu lado visionário: “O nosso programa é claro e resume-se em fomentar, com inteira independência e isenção, o progresso da arte em Portugal, quer auxiliando, direta ou indiretamente, os artistas, quer concorrendo para a educação estética do povo. A cultura artística não pode, todavia, fazer-se somente com obras do passado, por mais belas que elas sejam; é necessário também dar aos novos a oportunidade de se fazerem conhecer e compreender.” A História continua.
A casa nova
A remodelação do CAM centra-se num novo jardim e na sua ligação ao renovado edifício
A abertura ao público está marcada para 21 de setembro. Nesse sábado, os visitantes vão poder, finalmente, perceber em que resultou o trabalho do arquiteto japonês Kengo Kuma e do paisagista libanês Vladimir Djurovic na renovação e ampliação do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, inaugurado em 1983. O edifício original é um projeto do arquiteto britânico Leslie Martin e a sua instalação no antigo Parque de Santa Gertrudes (onde também está a sede da FCG) foi, na época, polémica – temendo-se que desvirtuasse o jardim e não estivesse à altura da qualidade arquitetónica do edifício-sede.
O fim destes trabalhos chegou a estar anunciado para 2021, por isso a expetativa é, por estes dias, grande. O jardim da Gulbenkian, muito frequentado pelos lisboetas, vai ganhar muito mais área (estendendo-se até à Rua Marquês de Fronteira). E a ligação entre o antigo jardim (projeto de Gonçalo Ribeiro Telles) e o novo, de Djurovic, far-se-á através da intervenção arquitetónica de Kuma no edifício, num novo hall com 550 metros quadrados. A cobertura é feita com placas de cerâmica branca, um material que simboliza bem as ligações entre as culturas portuguesa e japonesa.
Em termos de ocupação do centro, não existirá uma exposição permanente de obras da coleção, mas uma parte das suas reservas passará a ser visitável pelo público. Depois da reabertura, destaque para duas exposições: Da Desigualdade Constante dos Dias de Leonor, com obras da escultora Leonor Antunes (até fevereiro de 2025) e Linha de Maré, numa nova galeria subterrânea, que mostra obras da Coleção do CAM em que a relação entre Homem e Natureza está em destaque. Há, ainda, para ver uma exposição dedicada às fotografias e desenhos de Fernando Lemos e duas de artistas japoneses (Go Watanabe e Yasuhiro Morinaga) ainda ligadas à Temporada de Arte Contemporânea Japonesa iniciada em 2023.