A vida na Terra, tal como a conhecemos hoje, vive, provavelmente, o maior desafio de sempre: alimentar mais de 8 mil milhões de pessoas de forma sustentada. Chegados aqui, não podemos deixar de perguntar: os caminhos e as soluções propostas, globalmente, têm sido as melhores? Por quanto mais tempo a insustentabilidade em que vivemos é suportável pela Terra?
Este ano, mais uma vez em julho, atingimos o Earth Overshoot Day (dia da sobrecarga da Terra). Todos os anos, este dia é antecipado. Em Portugal, chega mais cedo cerca de dois meses, em maio, o que significa que vivemos 7 dos 12 meses com os recursos que não temos, o que torna o nosso país absurdamente insustentável.
Um pouco ao revés do que tem sido proposto, a vida local ajuda-nos a perceber o que podemos e devemos fazer pelo bem comum. Chamo a este claro caderno de encargos Transição Local. É à nossa porta, na escala local, que tudo se passa e, obviamente, se torna mais claro e percetível. É também no local que os recursos essenciais à vida, solo e água, existem e agimos sobre eles. É também na vida local que os 5 sentidos, de que somos privilegiadamente dotados, se manifestam/expressam. Na verdade, quase tudo nos afasta do tato, que nos transporta ao incontornável toque; do olfato, que nos faz sentir de maneira clara as estações do ano; e do paladar, que nos liga, como nenhum outro sentido, à nossa terra. O local onde nascemos, ou vivemos, marca-nos profundamente. No sentido inverso, muito além do contexto geográfico, “contaminamos” e apropriamo-nos do “nosso” lugar, há como que uma fusão e as duas partes são uma. Muito mais do que espaço ou território, o local tem identidade física, mas também cultural. É por tudo isto que os lugares têm escala, isto é, uma dimensão adequada para quem neles vive. Será que as realidades políticas são condicionadas e moldadas pelas contingências biofísicas mais básicas? Julgo que sim, já isto dizia o mestre Orlando Ribeiro. Mas, entretanto, outros autores veem, não o contrário, mas o complemento, uma espécie de “territorialidade relacional”. Assim, não há uma, mas múltiplas territorialidades, no mesmo país; a mesma paisagem, o mesmo bairro, encobrem uma vastidão de processos relacionais entre as pessoas e entre estas e o meio. Quando, quase nada sobra, resta o local e a sua alma, a identidade, os vizinhos de sempre, ou os novos que chegam. Este espaço geográfico a que chamamos lugar é muito mais do que uma posição e uma situação geográfica, assume uma natureza essencial, a ideia de que existe uma relação entre o lugar e as coisas ou os indivíduos que aí se encontram. Se o espaço é infinito, o lugar é circunscrito, associado a um limite, isto conforta-nos e compromete-nos. O lugar remete para a segurança, a estabilidade. Assim, o lugar é menos abstrato que o global, sendo composto por um certo número de valores que cada indivíduo apropria, alimenta e transforma. E, felizmente, tudo isto temos em quantidade suficiente para mantermos a esperança de lugares vivos e vividos. É aqui e agora, em cada lugar, que os recursos naturais e a própria vida têm expressão.
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Entretanto, não parece, mas vivemos a década da Restauração dos Ecossistemas lançada pela ONU em 2021. “A missão da Década das Nações Unidas, a Restauração de Ecossistemas, é tão importante quanto assustadora”, diz Tim Christophersen, coordenador da Década das Nações Unidas com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Antes disto, a ONU lançou os conhecidos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com metas para 2030, um perfeito fiasco. Numa desesperada fuga para a frente, ou para nos distrair, eis que em meados de setembro, em Nova Iorque, a ONU na Assembleia Geral das Nações Unidas realiza a Cimeira do Futuro de onde resultaram, segundo a sua retórica, “três importantes e históricos programas”: Pacto para o Futuro; Declaração sobre as Gerações Futuras e Pacto Digital Global. Obviamente que tudo isto vai dar em nada.
Como resolvemos esta encruzilhada civilizacional? Não há solução mágica, muito menos uma resposta única, a situação é verdadeiramente muito complexa para que assim seja. Temos de ponderar várias respostas, experimentar e implementar várias soluções parciais que todos compreendam e se possam envolver. É aqui que a Transição Local, como um somatório de várias e pequenas ações, se assume como um caminho credível e sustentável para que todas as comunidades o possam cumprir. O local é a escala em que todos vivemos e compreendemos, só aqui conseguimos envolver verdadeiramente as pessoas, é tempo para que as diferentes organizações decisoras o saibam e façam.
O Presidente da Assembleia da República continua a ignorar olimpicamente atentados flagrantes a princípios fundamentais à nossa Constituição verberados em pleno hemiciclo. Foi exatamente isso que aconteceu na última quinta-feira quando o deputado Ventura atribuiu culpa coletiva a um conjunto de portugueses na sequência do triplo homicídio de Lisboa. O mais impressionante nem foi a impassividade de Aguiar-Branco, já sabemos que se vê somente como um árbitro de boas maneiras e que crê não ter de advertir um deputado se ele disser que o Holocausto nunca existiu. Não, pior foi a impavidez e serenidade de todos os grupos parlamentares (a exceção foi o Livre) face não só à conduta de André Ventura como à de Aguiar-Branco.
Tendo o deputado do Chega atribuído uma espécie de culpa coletiva à comunidade cigana por um dos seus elementos ter cometido os referidos crimes, pensei que alguém podia lembrar que os que recentemente foram acusados de forçar mulheres a prostituírem-se são polícias, ou seja, e segundo o raciocínio, todos os polícias são lenocidas.
O adormecimento face a atitudes e afirmações que há muito pouco tempo chocariam e fariam soar os sinos da indignação é um sinal dos tempos particularmente perigoso. Casa muito bem com a criação de perceções e como estas estão a ser utilizadas para o discurso político.
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A questão começa logo na enunciação do problema. O que está primeiro, a criação da perceção ou o discurso político que se aproveita dela?
Tomemos como exemplo a suposta insegurança que estaremos a viver e serem os imigrantes os possíveis responsáveis por isso.
Por muito que os dados empíricos nos digam claramente que vivemos num dos países mais seguros do mundo e que não há nenhuma evidência de que os imigrantes tenham contribuído para qualquer aumento da criminalidade, não há dia sem que essas mentiras sejam propagadas aos quatro ventos.
Claro que não é de agora que existem órgãos de comunicação social ‒ faltando melhor expressão ‒ que vivem de vender o medo e que gastam diariamente dezenas de páginas e horas de televisão com crimes ‒ sendo que, a maioria das vezes, é o mesmo crime durante semanas inteiras. A isto veio juntar-se o estupidamente chamado jornalismo de cidadão, que através das redes sociais amplifica qualquer crime e dá-lhe contornos sempre mais brutais através de imagens e descrições que até o jornalismo de sarjeta evita.
No mesmo sentido, é fácil vender um estrangeiro como mau e causador de problemas: o medo do desconhecido é inerente à condição humana. Muita gente de cores, hábitos, religiões, modos de vida diferentes serão sempre alvo de apreensão e uns excelentes bodes expiatórios.
Tudo isto pode criar perceções, mas não cria um discurso político.
É realmente difícil lutar contra perceções erradas com factos, sobretudo quando são tão difundidas e ampliadas. Mas torna-se possível com empenho, utilizando as mesmas armas de quem as cria e mantendo constante a repetição da verdade.
Contudo, a dificuldade aumenta quando as perceções se tornam discurso político, criando-se uma narrativa legitimada por uma base ideológica, uma verdade, uma visão do mundo. Basta recordar, por exemplo, que em Portugal sempre se fez alarido da suposta corrupção sem freio ou dos perigos de imigrantes de certas cores e origens. O que não havia era enquadramento desse discurso numa proposta política.
É esse o momento-chave, conseguir converter uma mentira ou um primarismo irracional numa opinião sustentada por uma ideologia.
A perceção é assim transformada em discurso para que se venda a necessidade de políticas que, claro está, põem em causa a democracia liberal.
Já sabemos que há um movimento político com muito sucesso por esse mundo fora que cavalga estas e outras perceções sem qualquer cabimento empírico.
Como todos os movimentos políticos, o meio para alcançar o objetivo é alargar a sua base de apoio e para isso é preciso que mais pessoas partilhem as ideias que proclamam.
O centro-direita tem aguentado a pressão da extrema-direita. Bom exemplo, aliás, é a forma como Luís Montenegro tem aguentado a pressão em fazer acordos com o Chega. No entanto, há uma fação do PSD que parece estar disposta a seguir o caminho de vários partidos da sua família política europeia.
O discurso de Carlos Moedas nas cerimónias do 5 de Outubro e o que os seus ideólogos na comunicação social propagam nas suas recentes intervenções mostram que há uma direita que se está a extremar. A conversa da insegurança, a subtil ligação com a imigração e mentira das portas escancaradas é o discurso do Chega feito de maneira polida.
Como por esta altura só alguém muito distraído ignora que um discurso de extrema-direita não traz um voto ao centro-direita, bem pelo contrário, só se pode pensar que Moedas quer liderar um PSD de extrema-direita ou o Chega ou qualquer coisa de semelhante.
Talvez fosse melhor concentrar-se na gestão da cidade de que é presidente da câmara. Essa, sim, seria a boa forma de projetar as suas legítimas ambições.
Àboleia do crescimento económico e da aceleração da inflação, a receita fiscal do Estado por conta do IRC atingiu o montante máximo de 8,7 mil milhões de euros em 2023. No final deste ano, poderá alcançar um novo recorde. Os dados da execução orçamental mostram que, até julho, o encaixe com o imposto sobre os lucros das empresas superava em 36% o valor alcançado no mesmo período no ano anterior, atingindo já 85% da receita estimada para todo o ano de 2024. Num encontro recente com jornalistas, especialistas da Deloitte Tax admitiram que a receita venha a ultrapassar a barreira dos 10 mil milhões de euros no final do ano.
O IRC é o terceiro maior imposto em Portugal, a seguir ao IVA (24,3 mil milhões de euros em 2023) e ao IRS (18,4 mil milhões de euros), mas o seu peso na carga fiscal é relativamente baixo. Em média, representa 9% do valor dos impostos totais arrecadados pelo Estado. De acordo com dados do Portal das Finanças, são as grandes empresas as que mais contribuem para o IRC: apenas 5% pagam 65% do total da receita arrecadada pelo Estado.
Se somarmos todas as taxas de imposto que recaem sobre os lucros das empresas, Portugal não se sai muito bem da comparação com os outros países europeus. A taxa estatutária é de 31,5%, o segundo valor mais alto da União Europeia e também um dos mais altos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
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No entanto, um estudo do Banco de Portugal indicava, em 2022, que a taxa de impostos efetiva média aplicada às empresas permanecia “relativamente estável em torno de 25%” na última década, período em que a governação alternou entre o PSD/CDS e o PS. E, nesse caso, Portugal já se compara melhor com os outros Estados europeus. Como se passa de 31,5% de taxa estatutária para 25% de taxa efetiva no IRC?
Desde 2015 que a taxa nominal de IRC se mantém inalterada em 21%. A este valor, acresce 1,5% da derrama municipal, um adicional que o poder local pode ou não aplicar às empresas. Em cima disso, é aplicada a derrama estadual, criada em 2010, em plena crise financeira, como uma espécie de sobretaxa de IRC sobre as empresas com lucros tributáveis mais altos, e que pode chegar a 9%, perfazendo os tais 31,5% da taxa estatutária. Mas a mera soma aritmética destes números esconde que a tributação é progressiva, fazendo com que não seja sempre igual em cada uma das parcelas, e não tem em conta o “desconto” dos benefícios, deduções e incentivos fiscais concedidos às empresas. Em 2019, um grupo de trabalho criado pelo governo para estudar os benefícios fiscais contou 121 tipos diferentes destinados às empresas…
E assim chegamos à taxa efetiva média de 25%, que já não andará tão longe da média europeia ‒ apesar de ser muito difícil comparar as taxas efetivas entre países com regimes fiscais muito diferentes uns dos outros.
Corte “transversal” no IRC
O aumento da concorrência fiscal entre países, sobretudo no espaço europeu, tem-se traduzido por uma tendência para aligeirar as taxas de imposto sobre as empresas. Portugal não quer ser exceção, seguindo a tendência internacional. PSD, CDS e Iniciativa Liberal têm erguido a bandeira dos impostos e apontam a fiscalidade, sobretudo das empresas, como uma das principais causas da falta de competitividade da economia nacional. Do programa económico da AD fazia parte a descida do IRC em dois pontos percentuais ao ano, de modo a permitir reduzir a taxa dos atuais 21% para 15% no final da legislatura. Até no anterior governo do PS houve quem defendesse a descida da fiscalidade sobre as empresas. Agora, nas negociações para o Orçamento do Estado para 2025, a descida da taxa do IRC – mesmo apenas num ponto percentual – passou a linha vermelha.
O Orçamento do Estado para 2023 estava em preparação quando o então ministro da Economia, António Costa Silva, anunciou um corte no IRC, durante uma visita à feira de calçado de Milão. “Hoje, face à crise que temos, seria extremamente benéfico termos essa redução transversal [de IRC]”, disse o governante. No programa do anterior governo (de maioria PS), estava inscrita a ideia de um corte seletivo no IRC, de forma a beneficiar as empresas que reinvestissem os lucros e contratassem jovens qualificados. Mas o contexto inflacionista, causado pela guerra na Ucrânia, levou o ministro a ir mais além e a defender um corte transversal no imposto, ou seja, para todas as empresas, o que acabou por não acontecer.
Dois anos depois, o líder do PS, Pedro Nuno Santos, depois de se mostrar contra qualquer redução no imposto, chegou a admitir o corte de apenas um ponto no IRC, já em 2025, propondo trocar a medida do governo pela recuperação do crédito fiscal ao investimento. Até ao momento do fecho desta edição, o primeiro-ministro Luís Montenegro não tinha dado nenhum sinal de vir a aceitar a proposta.
Poucos pagam muito
5% das empresas (volume de negócios > €2 mil milhões)
Pagam 65% de imposto
95% das empresas (volume de negócios < €2 mil milhões)
Pagam 35% de imposto
Fonte: Deloitte Tax, a partir de dados de 2022 do Portal das Finanças
O programa com quase cem páginas é uma boa imagem para descrever a edição deste ano do FÓLIO, o Festival Literário Internacional de Óbidos promovido pela câmara municipal, pela Fundação Inatel e pela Ler Devagar. São mais de 600 iniciativas, entre debates, conversas, exposições, concertos e lançamentos de livros. No FÓLIO a grande e a pequena escala conjugam-se, com sessões para uma audiência maior numa tenda central e outras nos mais variados espaços da vila. Este ano, o mote é dado pelo tema da Inquietação: da guerra, do futuro, da incerteza e da própria literatura.
2. Ilustrações e exposições
Se o FÓLIO transforma Óbidos numa festa da literatura, não faltam outros atrativos. PIM! Mostra de Ilustração para Imaginar o Mundo é um deles, com inauguração no dia 12, na Galeria Nova Ogiva, e a entrega do Prémio Nacional de Ilustração, que distingue em 2024 Catarina Sobral. Este ano, cada ilustrador foi convidado a propor uma manifestação por uma causa, só sua ou de todos. A PIM é uma das 27 exposições, individuais (André Letria, João Abel Manta ou João Francisco Vilhena) e coletivas (BD, Mulheres Saramaguianas, Ilustrar o Zeca), do festival.
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3. Concertos
A Fundação Inatel volta a assumir a curadoria da secção Folia, que propõe oito concertos (sempre às 22h) ao longo de festival, com músicos consagrados e emergentes: LINA, numa evocação de Camões (dia 10), Nancy Vieira (11), Maria João (12), Entre Nós (13, mas às 19h), Miss Universo (16), Luta Livre (17), Emmy Curl (18) e BATIDA (dia 19).
4. Dos cinco continentes
A neozelandesa Eleanor Catton participa numa das conversas. Foto: DR
Em 14 sessões, o tema da Inquietação leva à tenda principal, no centro da vila, escritores dos cinco continentes, muitos com livros já traduzidos ou a chegarem às livrarias. Conversas com a holandesa Hanna Bervoets, a neozelandesa Eleanor Catton, os franceses Jean-Baptiste Andrea e Bruno Patino, a etíope Maaza Mengiste, o turco Burhan Sönmez, a espanhola Beatriz Serrano, a norte-americana Danya Kukafka, a sul-coreana Anna Kim e o bósnio Velibor Čolić, nos dias 11, 12 e 13. E a equatoriana Mónica Ojeda, o inglês Max Porter, os brasileiros Tiago Ferro e Natalia Timerman, os espanhóis Manuel Jabois e Irene Vallejo, a venezuelana Karina Sainz Borgo, a ruandesa Scholastique Mukasonga, o argentino Alberto Manguel, a dinamarquesa Katrine Engberg e o ucraniano Andrey Kurkov, nos dias 18, 19 e 20.
5. Casas
Por iniciativa dos organizadores ou promovidas por algumas editoras, há cada vez mais casas temáticas durante o FÓLIO, com várias conversas entre escritores e artistas. Na secção Fólio Mais, que agrupa propostas de vários parceiros, surgem as casas Escrevivência, em torno da obra de Conceição Evaristo, escritora brasileira agora editada em Portugal pela Orfeu Negro; Fulgor evoca Maria Gabriela Llansol; e Floresta, com uma literatura em “conexão com o ancestral, a comunidade e a Natureza”. As editoras Abysmo, Penguin Random House e Tinta-da-China também têm casa própria e encontros com os seus autores.
6. Que Educação?
Com olhos postos nos desafios do presente e do futuro, a área da Educação tem no FÓLIO um espaço privilegiado de reflexão e formação. No dia 17, decorre o seminário A Inquietação da Leitura para Tod@s, ponto alto de uma secção que inclui lançamentos de livros, oficinas e conferências.
7. Andar pelas ruas
Com ou sem programa na mão, o FÓLIO convida a uma deambulação pelas ruas da vila, um pretexto para conhecer os seus monumentos, centros culturais ou novos espaços e para ser surpreendido por uma sessão que está a decorrer. A variedade e a inclusão são duas palavras-chave do festival, num cruzamento de culturas e artes.
FÓLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos > Óbidos > 10-20 out > programação completa em foliofestival.com
A entrevista de Luís Montenegro à SIC – excecionalmente bem conduzida por Maria João Avillez – mostrou um primeiro-ministro politicamente empenhado em puxar por Portugal, absolutamente consciente das dificuldades que enfrenta do ponto de vista da sua base parlamentar de sustentação, mas totalmente focado no cargo que os portugueses lhe conferiram, garantindo que nada mais fará politicamente quando cumprir a sua missão e sair de S. Bento.
Montenegro tem um estilo muito próprio no exercício do cargo: não gosta de perder tempo com matérias laterais, nem com jogos políticos ineficazes, e muito menos com a imobilidade na tomada de decisões. Está sempre presente, aqui e ali, no país, convoca Conselhos de Ministros a qualquer momento e em qualquer lugar, e imprimiu um ritmo elevado ao seu Governo, como se viu nos últimos seis meses.
Fechou o Orçamento do Estado para 2025, sem saber o que o PS vai fazer, e com isso afastou-se da posição difícil onde o queriam encurralar. No final deste mês se verá. Nunca poderá ser acusado de não conceder, negociar e tentar ultrapassar as dificuldades. O facto de ter sido o programa de televisão mais visto da noite passada diz tudo sobre o interesse nacional.
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Só mais um pormenor muito pessoal: detesto a mudança nos interiores que foi feita em S. Bento. Aquilo não é uma residência oficial do primeiro-ministro, é um cenário da série “Star Trek”. Perdoem-me os arquitetos e designers de interiores que estiveram envolvidos naquela nave espacial. Há ali qualquer coisa de hotel experimentalista ou “b&b” futurista. Por mim, já teria virado tudo do avesso.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
“António Guterres era um jovem inteligente e progressista, que fazia parte do nosso grupo da Terceira Via, tal como o presidente da União Europeia, Romano Prodi.” Esta tinha sido, já, a primeira impressão do antigo Presidente norte-americano Bill Clinton, e ficou registada nas suas memórias (“A Minha Vida”, edição Círculo de Leitores). Neste excerto, o Presidente dos EUA descrevia uma deslocação a Portugal, na primavera de 2000, no âmbito de um périplo europeu. Mas ele já havia recebido Guterres, durante uma visita do chefe do governo português à Casa Branca, três anos antes. Naquela manhã, Clinton, que tinha fraturado uma perna e se encontrava de péssimo humor, surpreendeu a imprensa norte-americana ao aparecer, sorridente, muito bem-disposto, ao lado daquele desconhecido, baixote e com ar hispânico. De repente, o primeiro-ministro português, que já surpreendera, numa cimeira Europa-Ásia (como veremos adiante), parecia uma estrela fulgurante. E a secretária de Estado Madeleine Albright guardaria dele uma forte impressão, o que, em 2005, viria a ser decisivo na escolha do seu nome para dirigir a importante agência da ONU, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados).
O secretário-geral Guterres tem o emprego mais difícil do mundo: reporta a 193 patrões, tantos quantos os países que fazem parte da ONU Foto: LUSA
Este mesmo homem, que Clinton descobriu e Kofi Annan, carismático secretário-geral da ONU (1997/2006), consagrou, é o favorito para ser contemplado com o Prémio Nobel da Paz. Por ironia, isto ocorre na própria semana em que um país em guerra, Israel, o declara persona non grata e o proíbe de entrar no seu território. Os israelitas lançam, assim, uma “fatwa” inédita sobre um secretário-geral da ONU, e logo, talvez, àquele que, na História da instituição, mais vocal tem sido nos apelos à paz, nos aflitos alertas contra as alterações climáticas e nos lancinantes pedidos para que haja mais solidariedade para com os desvalidos deste mundo.
Timor na base de uma reputação
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Em setembro de 1999, António Guterres mostrava a força do seu soft power, perante uma grande potência. O chefe do governo português move mundos e fundos para forçar a entrada de um contingente da ONU no território de Timor-Leste. Um telefonema pungente ao Presidente norte-americano será decisivo. Viviam-se dias de brasa nas terras de Lorosae, depois do referendo de 30 de agosto desse ano, no qual a esmagadora maioria do povo timorense, que compareceu em massa nas urnas, votou pelo “sim” à independência. Em retaliação, milícias pró-Indonésia devastavam o território, matando, violando e incendiando, numa espiral de violência que o exército indonésio – suposto garante da sua segurança – incentivava. Só uma palavra do homem mais poderoso do mundo poderia convencer o clientelar regime de Jacarta a retirar e a dar lugar a uma verdadeira força de paz. E o governo português ameaçou mandar regressar tropas nacionais que participavam em missões da ONU, nomeadamente, na Bósnia e no Kosovo, caso Washington nada fizesse. Mas foi a diligência de Guterres que desbloqueou a situação: com as ruas de Lisboa inundadas de branco, com manifestações em solidariedade com Timor, Guterres ligou para a Casa Branca e falou com o amigo Bill: “Caro Presidente, liga lá a CNN e vê o que se está a passar em Lisboa.” Guterres apelou a Clinton falando-lhe dos sentimentos dos portugueses (um dos povos mais pró-americanos da Europa, mas que, por via desta crise, estava a resvalar para o antiamericanismo) e fez a necessária chantagem emocional. Ato contínuo, Bill Clinton, em pessoa, leu uma declaração ao mundo, transmitida pelas cadeias internacionais: “A Indonésia deve aceitar a ajuda das forças da ONU em Timor-Leste.” Era a vitória.
As muitas diligências pessoais e diplomáticas de Guterres já lhe aplainavam o caminho, na ONU. Kofi Annan, então secretário-geral da organização (e futuro Nobel da Paz), era um aliado da causa de Timor. E Guterres ficou-lhe na retina: “Homens assim é que precisamos de ter aqui connosco”, comentava o secretário-geral. Anos depois, na recomendação de Madeleine Albright, para que Guterres viesse a ser o homem forte do ACNUR – uma proeminente posição política que reporta diretamente ao secretário-geral –, a velha amiga, com a autoridade de representar o país principal financiador da agência, diz, preto no branco: “É uma personalidade internacional brilhante!” Nesta altura, Bill Clinton já o trata, em público, por “grande amigo” e empenha-se na nomeação, quando o português disputa o lugar contra sete adversários muito fortes e que, na altura, eram uma espécie de “tropa de elite” da política internacional. A 25 de maio de 2005, Kofi Annan anuncia a decisão e, na comunicação, enfatiza o papel de Guterres na resolução do problema de Timor, uma antiga pedra no sapato da ONU. No funeral de Annan, em Accra, em setembro de 2018, Guterres há de discursar: “Ele era um bom amigo e partilhámos juntos muitas causas. E, quando o ACNUR precisou de uma nova liderança, Kofi abençoou-me com a sua confiança.”
Pelos céus da Europa No Falcon da Força Aérea, com Javier Solana. Em 2000, Guterres afirmou a presidência portuguesa, fazendo aprovar a histórica Agenda de Lisboa Foto: D.R.
Timor – voltamos à Oceânia – é, aliás, muito simbólico da sua própria afirmação internacional. E é-o desde o início. Quando ninguém o conhecia, primeiro-ministro novato, no ano de 1996, viu-se no meio de um encontro UE-Ásia, na Tailândia. Numa reunião informal, antes da cimeira, Guterres levanta-se e dirige a palavra ao poderoso ditador da Indonésia, Hadji Mohamed Suharto. O português estava avisado: os seus pares europeus não tolerariam que o “irritante” entre Portugal e a Indonésia, o minúsculo e irrelevante território de Timor-Leste, estragasse um evento crucial para o bom andamento dos negócios. Os indonésios tinham ameaçado que se retirariam se o assunto viesse à baila e o primeiro-ministro britânico, John Major, propôs que se retirasse a palavra a quem mencionasse o tema. Mas Guterres não recua. Com todos instalados em confortáveis poltronas, num luxuoso salão oriental, o jovem governante português interpela o Presidente indonésio: “Liberte Xanana Gusmão [líder da resistência timorense, preso em Jacarta] e Portugal aceitará a abertura de secções de interesses dos nossos países, em embaixadas amigas, em Jacarta e em Lisboa.” Ninguém esperava isto: nem os europeus, nem os asiáticos, nem os próprios membros presentes da diplomacia portuguesa. Suharto não disse nada. Mas também não se retirou da sala. Na abertura dos trabalhos, no dia seguinte, Guterres concordou que os assuntos bilaterais entre os países presentes não deviam ser trazidos para a reunião, mas avisou que Portugal tinha um desses assuntos pendentes… Depois de uma pequena pausa de suspense, prosseguiu: “É com a China e refere-se à transferência de Macau. Mas esse está a ser resolvido. Já a questão de Timor-Leste não é bilateral, mas sim multilateral, no âmbito da ONU. E já tive oportunidade de propor ao Presidente Suharto uma saída para o problema de forma a chegarmos a uma solução por etapas.” A habilidade construtiva de Guterres caiu bem e o seu talento diplomático iniciava a sua lenda. Muito depois, em outubro de 2016, e após ter passado com distinção e votações favoráveis em sucessivas audições aos candidatos, o irreverente primeiro-ministro júnior de dez anos antes era eleito para o cadeirão mais alto da ONU. O Conselho de Segurança aclamou-o, por unanimidade, para suceder ao coreano Ban Ki-moon e o embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin, anunciou a decisão: “Tem grandes credenciais ao nível da ONU; é um político de alto nível, que fala com toda a gente e escuta toda a gente e expressa francamente a sua opinião; é uma excelente escolha.”
Bater o pé na Europa
Já no governo, uma década antes, António Guterres preferira sempre os grandes palcos internacionais, onde se movia como peixe na água, às chatices da política nacional e ao fardo da governação. A “sua praia” foi a presidência europeia, que exerceu em 2000, e de onde saiu a Agenda de Lisboa. Nesse documento, foi precursor na aposta na inovação, no conhecimento e na educação como alavanca do desenvolvimento da União. Em Lisboa, entregava o governo a superministros como Pina Moura, João Cravinho, Ferro Rodrigues e Jorge Coelho. Na presidência europeia, consegue ser bastante mais firme do que no governo, recusando conversas com o austríaco Jörg Haider, o primeiro líder de extrema-direita europeu a ascender a um governo da União e rapidamente ostracizado por causa da sua intenção de adotar políticas xenófobas.
Antes da assinatura do Tratado de Nice, Guterres liderara uma revolta dos países pequenos contra o diretório dos grandes. Os franceses queriam assegurar a hegemonia dos grandes nas votações decisivas na UE, mas Guterres bloqueou a decisão até ao fim e, um a um, conseguiu convencer vários parceiros e até a Alemanha aquiesceu. No final de reuniões tensas, França viu-se subitamente isolada e foi obrigada a negociar com Portugal.
Tratado de Nice Guterres liderou uma revolta dos pequenos países e encostou à parede França, que se viu obrigada a negociar… Foto: Luís Barra
Em 1998, António Vitorino percorre a Europa a reunir apoios para a candidatura de Guterres à presidência da Internacional Socialista (IS, cargo que viria mesmo a exercer) e qual não é a sua surpresa quando ouve, de todos os lados: “Porquê para a IS? Ele vai dar é um excelente sucessor de Jacques Delors, na presidência da Comissão Europeia.” E o próprio Jacques Delors, já depois de retirado, elegia Guterres como seu delfim. Numa reunião do Conselho Europeu, na Alemanha, os então Quinze apoiam-no explicitamente: “É o homem certo para conduzir a Europa na fase de abertura da União a Leste.” Mas o futuro não passava por aí. À política interna somou-se o problema pessoal: Guterres enviuvara recentemente e ficara com uma filha pré-adolescente a cargo (Mariana, a mais nova do casal de descendentes). Não concebia mudar-se para Bruxelas. O comboio passou, e não voltou à mesma estação. Em 2004, no apeadeiro seguinte, seria apanhado por Durão Barroso.
Em estágio para a ONU
Quando Guterres, em dezembro de 2001, bateu com a porta e abandonou o “pântano”, ficou um tanto ou quanto desasado. Vinte e oito anos depois de ter deixado a vida “civil”, estava outra vez por sua conta. Tinha casado de novo, com Catarina Vaz Pinto, e queria refazer a sua vida. O trabalho no gabinete do Banco de Portugal, onde foi colocado, dava-lhe tempo para outras atividades que lhe limpassem a cabeça. Numa iniciativa que nunca quis ver coberta pelos média, voltou ao voluntariado, dando explicações de Matemática a alunos desfavorecidos do bairro da Quinta do Mocho. Lembrava-se bem das atividades dos anos 60, na JUC (Juventude Universitária Católica) e no assistencialismo social. Conhecia bem as barracas, os bairros degradados e a miséria humana. Membro do CASU (Centro de Assistência Social Universitária), sujou os sapatos, no terreno, quando as grandes cheias de 1967 fizeram centenas de mortos na Grande Lisboa.
Líderes de várias latitudes Bill Clinton, nas suas memórias, descreve a visita a Lisboa em termos muito positivos. De Guterres, afirma que era “um jovem inteligente e progressista”
Adelino Amaro da Costa tentara recrutá-lo para o Opus Dei (sem sucesso) e o padre António Alves de Campos convencera-o a colaborar numa ação da Mocidade Portuguesa, onde foi fazer perguntas “incómodas”, sendo rapidamente descartado. Guterres, sem grande espessura ideológica, é ainda um “apolítico”, mas a experiência de vida empurra-o para um indefinido posicionamento nas áreas sociais. Quando adere ao PS, o mesmo prelado espanta-se: “Eu esperava ver o meu amigo a aderir ao CDS, no máximo, ao PPD… Mas o PS? Não é um comunismo adocicado?” Guterres respondeu da forma mais pragmática: “O PS é o partido que me dá mais possibilidades de pôr em prática as minhas ideias sociais.”
Passada a desilusão do poder, Guterres sonhou com um lugar internacional de destaque que voltasse a permitir-lhe aplicar tais ideias. A vaga no ACNUR era perfeita. Nos bastidores, o antigo primeiro-ministro mexe os cordelinhos. Clinton ainda “manda no mundo”, a amiga Albright engraçou com ele, Kofi Annan já lhe disse que precisa de o ter a seu lado. No final da primavera de 2005, o lugar será seu.
A primeira missão
A 23 de junho de 2005, a VISÃO, que acompanha, de forma histórica, a sua primeira missão na ONU, como diretor do ACNUR, em visita a campos de refugiados no Uganda, escreve na sua reportagem: “O pequeno bimotor das Nações Unidas, que o transportava desde Entebbe, pousava, com uma guinada lateral, no Noroeste do Uganda, na pista de terra batida de Arua, pouco mais larga do que as picadas que, de jipe e aos solavancos, o novo alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados haveria de percorrer, nos três dias seguintes.” E o relato prossegue, agora de uma forma retrospetiva: “Cerca de dez horas antes, no conforto da classe executiva do voo BA63 da British Airways, que o levou de Londres para as margens do lago Vitória, Guterres esclarecera-nos: ‘Pedi para dormir, amanhã, exatamente nas mesmas condições em que está instalado o nosso pessoal do ACNUR.’ Ao final da tarde de segunda-feira, fizeram-lhe a vontade. Esperava-o o branco-sujo de uma exígua tenda. Lá dentro, um divã, uma cadeira e uns chinelos de quarto. Cá fora, mais quatro barracas iguais, armadas ao lado dos casinhotos da base do ACNUR no distrito de Yumbe. Ainda o capim, as mangueiras dispersas, as plantações de tabaco e de milho, a solidão. E nuvens carregadas. Senhor engenheiro, bem-vindo ao mundo real.” A primeira missão de Guterres foi a de chamar a atenção para o tema dos refugiados. Essa mensagem seria transmitida, naqueles três dias, em declarações a consecutivos serviços noticiosos da BBC. E o antigo primeiro-ministro português, progressivamente mais mediático, que se lançara numa operação pouco comum e raramente vista em altos-comissários seus antecessores, recebeu mesmo uma chamada, por telefone satélite, em plena picada africana, para um direto de som na CNN… O faro mediático de Guterres confirmou-se quando conseguiu convencer a estrela de Hollywood Angelina Jolie a tornar-se uma espécie de embaixadora do ACNUR, com a atriz a acompanhá-lo, no terreno, em diversas ocasiões. Uma boa maneira de chegar à opinião pública mundial…
Os 193 patrões de Guterres
Um dos antecessores de António Guterres costumava dizer que ocupava o emprego mais difícil do mundo: ele tinha de reportar a 193 patrões, tantos quantos os países que fazem parte da organização. Se a esta Babilónia de “chefes” juntarmos o facto de estarem, em grande parte, desavindos, despejando sobre a cabeça do “funcionário” ordens, instruções e desejos contraditórios, ficaremos a perceber como é difícil dar conta do recado. Um dos “bosses” acaba de cortar definitivamente com o “empregado” e proíbe-o de visitar o seu “gabinete”. Israel ofendeu-se por Guterres, supostamente, não ter condenado o recente ataque de mísseis iranianos sobre solo israelita – coisa que fez, embora sempre colocando o caso em perspetiva e aludindo aos riscos de escalada de guerra na região, pedindo, pela enésima vez, contenção a todas as partes. Guterres é o secretário-geral de uma organização com muitas sensibilidades e os países árabes (e outros tantos também muçulmanos) formam um respeitável contingente. Um diplomata retirado diz-nos que Guterres, sem deixar de condenar o terrorismo do Hamas, não pode deixar de mostrar compreensão pela sensibilidade árabe, relativamente à situação do povo palestiniano. Guterres tem seguido de perto as resoluções das Nações Unidas e o discurso, por ser muito equilibrado – condenando o Hamas e o Hezbollah mas também a desproporção da reação israelita –, não agrada a Telavive, que interpreta qualquer reparo à sua política como uma posição antissemita.
No terreno Alto-comissário para os Refugiados ou secretário-geral da ONU, Guterres insistiu sempre em visitar os locais onde as coisas acontecem
Não é a primeira vez que Guterres é atacado por defender causas que os países não entendiam, antes, como fazendo parte das competências de um secretário-geral. Por exemplo, ter recebido a ativista Greta Thunberg e pontuar as suas intervenções pelos apelos ao combate ativo às alterações climáticas pode ser surpreendente, mas também contará para o reconhecimento dos decisores do Nobel. Guterres faz uma interpretação muito literal dos ensinamentos de Kofi Annan, que citou no discurso proferido durante o enterro do antigo diplomata ganês: “Por favor, continuem, dizia Kofi! Vocês sabem o que têm de fazer: Tomem conta uns dos outros! Tomem conta do nosso planeta!” Ora, são precisamente essas causas, bem como a sua voz, que, embora pareça pregar no deserto, continua a insistir, a insistir e a insistir, que lhe terão valido a dianteira na bolsa de apostas para o galardão do Nobel. O mesmo diplomata anteriormente citado reconhece que se nesta sexta-feira o prémio for para Guterres, isso dará uma visibilidade maior à sua intervenção, e também muito mais credibilidade ao que vier a dizer, daqui para a frente. O reconhecimento do Comité Nobel Norueguês costuma conferir um suplemento de respeitabilidade aos laureados. Afinal, como disse o 2º secretário-geral da história das Nações Unidas, o sueco Dag Hammarskjöld, “este cargo não foi criado para levar a humanidade ao Paraíso, mas para a livrar do inferno”.
A Parábola dos Talentos
A vocação de Guterres tem um lado místico bastante forte e ele costuma citar, por tudo e por nada, a Parábola dos Talentos, referida, nos Evangelhos, embora com duas versões diferentes, por Lucas e Mateus. Guterres faz uma interpretação que o tem guiado toda a vida, como uma exortação a que cada um use os seus “talentos” (que, literalmente, eram uma moeda corrente no tempo de Cristo) como dons doados por Deus, para que sejam colocados ao serviço dos outros. Esse é o alfa e o ómega da sua ética moral, embora, na sua ascensão ao poder, tenha recorrido aos truques habituais da mais rasteira luta política… Mas foi a Parábola dos Talentos que o levou para a política, ironicamente por influência do maçon agnóstico António Reis, cofundador do PS. No início dos anos 70, Guterres assistiu a uma palestra deste então colunista da Seara Nova, que habilmente utilizou a mensagem do Concílio Vaticano II para atrair os católicos para as causas do tempo. A palestra tratava disso mesmo: no quadro do salazarismo/marcelismo, não bastava aos católicos seguir o cristianismo no recato dos altares, era preciso agir. Não admira que tenha sido António Reis a apadrinhar a sua posterior inscrição como militante do PS…
De São Bento a Nova Iorque Boas relações com Yasser Arafat e a Autoridade Palestiniana, sem que as relações com Israel sofressem qualquer atrito… Numa cimeira da ONU, avistou-se com a jovem ativista Greta Thunberg, numa clara mensagem de apoio à ação climática
O homem que, nos anos 70, fundara a DECO assina, na sequência do desastre eleitoral do PS de Jorge Sampaio, em 1991, o “livro de reclamações” do partido: perante as câmaras de televisão, e com ar grave, declara-se “profundamente chocado”, o que é interpretado como uma declaração de guerra à liderança socialista. Começa uma luta fratricida que resulta na sua eleição como secretário-geral em 1992. Em Belém, está instalado o patriarca Mário Soares, que olha com condescendência aquela travessia do deserto, até 1995. Num jantar privado, Soares solta uma obscenidade: “Bolas, estava a dizer mal do Guterres, já mordi a língua…” E tinha razão para a morder: com a ideia dos Estados Gerais, o líder socialista começa a construir um projeto atrativo, que penetra na sociedade civil. Em modo soft power, como sempre, aproveita a agonia do cavaquismo. Percorre o País ouvindo ópera, em altos berros, nas aparelhagens das viaturas, e quase ensurdecendo os motoristas. Espera-o a ascensão e a queda. Nos seus governos, tendo dito que não havia jobs for the boys (foi ele o introdutor da expressão no léxico político português), permitiu que os socialistas açambarcassem os cargos do Estado. Tendo jurado que, entre a espada e a parede, preferia a espada, acabou por fazer passar o iníquo Orçamento “limiano”, “comprando” o voto de um deputado do CDS. A ponte de Entre-os-Rios ruiu ao ritmo da própria derrocada do governo e é um primeiro-ministro de olhos tristes, sem a energia de um Pombal, que visita, compungido, como um cangalheiro, o cenário do desastre.
Zangado com o País, jura que não voltará à política nacional – e será escusado o PS pensar nele para as próximas presidenciais. (Aliás, como escreveu a VISÃO, há muitos anos, num perfil sobre o atual comentador da SIC, “Marques Mendes só tem menos três centímetros do que Guterres”…) Há de reerguer-se, não na sua terra, onde os profetas costumam falhar, mas longe dela, onde costumam vingar. A ONU é o seu destino. O português atípico que detesta bacalhau mas não resiste aos pastéis de nata, poliglota, cosmopolita, mal se lembrará, agora, das temporadas da sua infância, em Donas, no Fundão, onde, na pele do pequeno Tonico, dera nas vistas, como acólito, perante o olhar embevecido do pároco Alfredo Fernandes. Estaria ali o começo de uma brilhante carreira eclesiástica? A vida profana levou-o, não a bispo, nem a Papa, mas a chefe de governo e a secretário-geral da ONU. Nas missas existe o momento da “paz dos fiéis”, quando o celebrante diz: “A paz esteja convosco.” Mas Guterres, que poderá sonhar, esta noite, com o Nobel da Paz, está proibido de visitar o local onde Cristo nasceu. Talvez Oslo seja a sua próxima terra prometida.
Frases para a História
“A Humanidade abriu as portas do inferno” Cimeira das Nações Unidas sobre a Ambição Climática – Setembro de 2023
“A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou. O ar é irrespirável. O calor é insuportável. E o nível de lucros dos combustíveis fósseis e a inação climática são inaceitáveis” Conferência de imprensa sobre a superação dos recordes de calor, em vários anos consecutivos – Junho de 2023
“A Humanidade tornou-se uma arma de extinção em massa” Conferência da ONU sobre Biodiversidade – Dezembro de 2022
“O mundo está numa autoestrada para o inferno climático com o pé no acelerador. A Humanidade tem uma escolha: cooperar ou morrer” Discurso de abertura da COP 27, em Sharm-el Sheik, Egito – Novembro de 2022
“É imoral que as petrolíferas e as empresas de gás estejam a fazer lucros recordes a partir da crise energética e graças às pessoas e comunidades mais pobres, com um custo enorme para o clima” Discurso, em Nova Iorque, a apelar aos governos para taxarem os lucros excessivos das petrolíferas – Agosto de 2022
“Se não mudarmos a nossa vida, podemos já não ter vida para mudar” Na abertura da Cimeira do Clima, em Madrid – Dezembro de 2019
“Temos um mundo em pedaços, temos de ter um mundo em paz” Discurso na abertura da 72.ª Assembleia Geral das Nações Unidas – Setembro 2022
“É importante reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo. O povo palestiniano está sujeito a 56 anos de ocupação sufocante (…) Mas as queixas do povo palestiniano não podem justificar os ataques terríveis do Hamas. E esses ataques terríveis não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano” Intervenção sobre o Médio Oriente, no Conselho de Segurança, após a resposta de Israel em Gaza aos atentados do Hamas – Outubro de 2023
“As pessoas não precisam de líderes que invoquem os impulsos mais sombrios da Humanidade, alimentando o medo, a insegurança e mentiras descaradas. Elas precisam de líderes que invoquem o que há de melhor em nós – honrando a dignidade humana e aproveitando os talentos, as ideias e as energias de cada pessoa” Declaração sobre a Democracia – Dezembro de 2021