O Presidente da Assembleia da República continua a ignorar olimpicamente atentados flagrantes a princípios fundamentais à nossa Constituição verberados em pleno hemiciclo. Foi exatamente isso que aconteceu na última quinta-feira quando o deputado Ventura atribuiu culpa coletiva a um conjunto de portugueses na sequência do triplo homicídio de Lisboa. O mais impressionante nem foi a impassividade de Aguiar-Branco, já sabemos que se vê somente como um árbitro de boas maneiras e que crê não ter de advertir um deputado se ele disser que o Holocausto nunca existiu. Não, pior foi a impavidez e serenidade de todos os grupos parlamentares (a exceção foi o Livre) face não só à conduta de André Ventura como à de Aguiar-Branco.
Tendo o deputado do Chega atribuído uma espécie de culpa coletiva à comunidade cigana por um dos seus elementos ter cometido os referidos crimes, pensei que alguém podia lembrar que os que recentemente foram acusados de forçar mulheres a prostituírem-se são polícias, ou seja, e segundo o raciocínio, todos os polícias são lenocidas.
O adormecimento face a atitudes e afirmações que há muito pouco tempo chocariam e fariam soar os sinos da indignação é um sinal dos tempos particularmente perigoso. Casa muito bem com a criação de perceções e como estas estão a ser utilizadas para o discurso político.
A questão começa logo na enunciação do problema. O que está primeiro, a criação da perceção ou o discurso político que se aproveita dela?
Tomemos como exemplo a suposta insegurança que estaremos a viver e serem os imigrantes os possíveis responsáveis por isso.
Por muito que os dados empíricos nos digam claramente que vivemos num dos países mais seguros do mundo e que não há nenhuma evidência de que os imigrantes tenham contribuído para qualquer aumento da criminalidade, não há dia sem que essas mentiras sejam propagadas aos quatro ventos.
Claro que não é de agora que existem órgãos de comunicação social ‒ faltando melhor expressão ‒ que vivem de vender o medo e que gastam diariamente dezenas de páginas e horas de televisão com crimes ‒ sendo que, a maioria das vezes, é o mesmo crime durante semanas inteiras. A isto veio juntar-se o estupidamente chamado jornalismo de cidadão, que através das redes sociais amplifica qualquer crime e dá-lhe contornos sempre mais brutais através de imagens e descrições que até o jornalismo de sarjeta evita.
No mesmo sentido, é fácil vender um estrangeiro como mau e causador de problemas: o medo do desconhecido é inerente à condição humana. Muita gente de cores, hábitos, religiões, modos de vida diferentes serão sempre alvo de apreensão e uns excelentes bodes expiatórios.
Tudo isto pode criar perceções, mas não cria um discurso político.
É realmente difícil lutar contra perceções erradas com factos, sobretudo quando são tão difundidas e ampliadas. Mas torna-se possível com empenho, utilizando as mesmas armas de quem as cria e mantendo constante a repetição da verdade.
Contudo, a dificuldade aumenta quando as perceções se tornam discurso político, criando-se uma narrativa legitimada por uma base ideológica, uma verdade, uma visão do mundo. Basta recordar, por exemplo, que em Portugal sempre se fez alarido da suposta corrupção sem freio ou dos perigos de imigrantes de certas cores e origens. O que não havia era enquadramento desse discurso numa proposta política.
É esse o momento-chave, conseguir converter uma mentira ou um primarismo irracional numa opinião sustentada por uma ideologia.
A perceção é assim transformada em discurso para que se venda a necessidade de políticas que, claro está, põem em causa a democracia liberal.
Já sabemos que há um movimento político com muito sucesso por esse mundo fora que cavalga estas e outras perceções sem qualquer cabimento empírico.
Como todos os movimentos políticos, o meio para alcançar o objetivo é alargar a sua base de apoio e para isso é preciso que mais pessoas partilhem as ideias que proclamam.
O centro-direita tem aguentado a pressão da extrema-direita. Bom exemplo, aliás, é a forma como Luís Montenegro tem aguentado a pressão em fazer acordos com o Chega. No entanto, há uma fação do PSD que parece estar disposta a seguir o caminho de vários partidos da sua família política europeia.
O discurso de Carlos Moedas nas cerimónias do 5 de Outubro e o que os seus ideólogos na comunicação social propagam nas suas recentes intervenções mostram que há uma direita que se está a extremar. A conversa da insegurança, a subtil ligação com a imigração e mentira das portas escancaradas é o discurso do Chega feito de maneira polida.
Como por esta altura só alguém muito distraído ignora que um discurso de extrema-direita não traz um voto ao centro-direita, bem pelo contrário, só se pode pensar que Moedas quer liderar um PSD de extrema-direita ou o Chega ou qualquer coisa de semelhante.
Talvez fosse melhor concentrar-se na gestão da cidade de que é presidente da câmara. Essa, sim, seria a boa forma de projetar as suas legítimas ambições.
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