Tanto Trump como Biden “trouxeram” Deus para a luta política. Depois de ter sobreviver a uma tentativa de assassínio num comício em Butler (Pensilvânia), a 13 de julho, Donald Trump declarou, na convenção republicana que o confirmou então como candidato à Casa Branca: “Estou diante de vós nesta Arena [em Milwaukee, Wisconsin] apenas pela graça de Deus Todo-Poderoso. E, ao ver as notícias dos últimos dias, muitas pessoas dizem que foi um momento providencial. Provavelmente, foi.”
Mas também Biden o fez, quando estava debaixo de forte pressão do seu próprio partido para desistir da candidatura à reeleição, em face das gafes recorrentes e das crescentes debilidades físicas e cognitivas reveladas, ao afirmar numa entrevista à televisão ABC News: “Se o Senhor Todo-Poderoso descesse e dissesse: ‘Joe, sai da corrida’, eu sairia da corrida. O Senhor Todo-Poderoso não vai descer.”
Este tipo de comportamento é normal na América, onde os presidentes prestam juramento com a mão sobre a Bíblia. Os americanos ascenderam à Modernidade pela via da religião, mas a velha Europa fê-lo pelo secularismo. Ainda assim, os estados modernos do continente foram construídos na lógica das igrejas nacionais, ligando a identidade nacional à religião enquanto marca identitária, a partir do campo religioso luterano, anglicano e ortodoxo. Mas também no caso católico, apesar da estrutura transnacional do Vaticano.
Havia que estabelecer um elo de ligação entre os estados e os respectivos povos. Daí as religiões oficiais presentes na Dinamarca, Reino Unido e Grécia, por exemplo. Apesar disso, o facto de alguns países ocidentais terem optado por uma religião oficial não significa qualquer reflexo negativo nas liberdades cívicas e políticas dos cidadãos.
Numas dezenas de países em todo o mundo exige-se mesmo que o chefe de Estado assuma uma filiação religiosa concreta e específica, e ainda é mais complicado em países islâmicos onde o princípio da separação entre estado e religião é menos evidente ou inexistente. Tais estados não sofreram directamente a influência do constitucionalismo moderno, pelo que a ideia de separar estado e religião não vingou.
Israel, por sua vez define-se como “o lar nacional do povo judeu”, embora cerca de 20% dos israelitas sejam árabes, na sua maioria muçulmanos. Já a constituição da Índia prevê um regime secular e igualdade religiosa, todavia Narendra Modi tem-se esforçado por fazer do país a pátria dos hindus, em claro prejuízo das minorias religiosas.
Ao contrário do que muita gente pensa, a ideia da laicidade não teve origem na revolução francesa ou em qualquer outro movimento ou acontecimento político, mas sim de Jesus Cristo com o seu célebre: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Com tal destrinça, o Mestre Jesus definiu dois campos distintos: o reino dos homens e o reino de Deus. Os cristãos têm os dois pés assentes em ambos, são cidadãos do seu país e cidadãos desse reino espiritual, acerca do qual Jesus disse que não era “deste mundo”.
É por isso que a teologia do domínio e outras que andam à volta do assalto ao poder político por parte dos cristãos deve ser desconsiderada em qualquer circunstância e em qualquer parte do mundo, visto radicar num erro grosseiro de análise. A fé cristã genuína não anda em palácios mas no meio do povo. Não pensa em poder secular ou financeiro mas sim em poder espiritual. E muito menos pretende ascender ao poder dos homens a fim de fazer calar, perseguir ou banir os crentes que se inscrevem noutras paragens religiosas e ideológicas, incluindo o agnosticismo e o ateísmo.
Aquilo que se vai verificando um pouco por toda a parte, nalgumas lideranças do mundo cristão, é a confissão acabada da ignorância do que é o evangelho de Cristo, porque vivem e agem desfocadas da pessoa, discurso e obra daquele que dá nome à sua fé. É estranho mas é verdade. Olham para Cristo como se estivessem dentro da caverna de Platão, como uma sombra da realidade.
Há que voltar ao Evangelho. É urgente.
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