Nestas coisas de escândalos nas lideranças políticas e demais cargos públicos a questão criminal é apenas uma das vertentes a considerar. Não se espera menos do que o escrupuloso cumprimento da lei. Muitos duvidam que Montenegro o tenha feito. Temos que considerar também a questão ética, que não depende da lei mas do facto de os governados esperarem que os governantes ajam com lisura e defendam sempre o interesse do Estado, em vez dos seus interesses particulares pessoais, familiares ou de grupo. Parece que Montenegro não sabia disso.
Depois vem a questão institucional. Um primeiro-ministro que governa num regime semipresidencial tem que se entender com o mais alto magistrado da nação. Parece que Montenegro não sabia que não podia falhar na lealdade que devia a Marcelo, ao deixá-lo na completa ignorância do que iria comunicar ao País quando avançou com a possibilidade duma moção de confiança. Por último, mas não menos importante, vem a questão política, que é como quem diz que um governo minoritário não pode reservar à oposição o papel de embrulho. Parece que Montenegro também não o sabia.
Aqui chegados não podemos esconder que a responsabilidade principal da instabilidade que vivemos no último ano e que provavelmente se vai prolongar no tempo pertence sobretudo a Marcelo. Foi ele que decidiu, à revelia do Conselho de Estado e da Constituição, dissolver um parlamento que contava com uma maioria absoluta de deputados dum só partido, e que poderia garantir estabilidade política a um governo depois de Costa.
Ao avançar então para eleições sem necessidade – decisão que estava exclusivamente na sua mão – Marcelo ofereceu ao País um parlamento pulverizado e sem boas condições de governabilidade, com a agravante de o principal concorrente ter ganho ao segundo por duas décimas de votos. Lindo serviço.
Agora vamos de novo a eleições legislativas, em cima das regionais na Madeira, das autárquicas e das presidenciais. Ninguém sabe o que sairá delas. Mas num mundo onde os Estados Unidos elegeram como presidente pela primeira vez na história um criminoso condenado, e num país onde Isaltino foi condenado, cumpriu pena e voltou a ganhar a câmara de Oeiras, tudo é possível.
Para agravar ainda mais a situação, temos um primeiro-ministro que afirma aos quatro ventos que voltará a ser candidato a chefiar o governo mesmo que entretanto seja constituído arguido. A falta de vergonha já chegou a este ponto. Entretanto, Marques Mendes que sempre condenou este tipo de prática política, fica calado por que precisa do apoio do PSD para a sua campanha presidencial.
Fernanda Câncio fez bem em lembrar a reação de Montenegro enquanto líder da oposição, relativamente à demissão de António Costa a 7 de novembro de 2023, decisão que tomou após a Procuradoria-Geral da República ter publicado um comunicado no qual informava que estava a ser investigado no âmbito de um processo criminal. Disse Montenegro: “A manipulação e a mentira têm sempre um prazo de validade”. Na mesma alocução, Montenegro usou palavras como “compadrio”, “pântano”, e falou até de “corrupção administrativa e política”. E de “ser imperioso recuperar a confiança”.
Até agora nada se apurou de António Costa, mas já no caso Montenegro, de acordo com o constitucionalista Jorge Reis Novais: “as avenças pagas à Spinumviva continuaram a ser pagas a Luís Montenegro, mesmo após este assumir o cargo de primeiro-ministro, o que viola a exclusividade a que está obrigado enquanto governante.”
Temos, portanto, o desenrolar da novela “Mar Negro” (Marcelo + Montenegro) diante dos olhos do País, com dois protagonistas de primeiro plano. Por um lado, Marcelo, eterno criador de cenários e de factos políticos, e presidente que “fala por tudo e por nada”, e que criou as condições objectivas para a actual realidade. Por outro lado, Montenegro falhou no mais básico, destruindo a confiança do País no seu chefe de governo, rodeado de suspeitas.
Em todo o caso Marcelo já não se livra do cognome “O Dissolvente”. Entretanto, Cavaco, que tanto se empenhou publicamente na campanha que levou Montenegro ao poder, permanece calado…
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