Visitei há dias o Museu Nacional da Escravatura, em Luanda, que data do séc. XVIII, criado a partir de instalações situadas numa fazenda da família Matoso de Andrade e Câmara junto à baía, e que serviram para a reunião, baptismo católico e embarque de milhares de escravos africanos. Muitas vítimas deste tráfico chegavam ao Brasil mas outras morriam na viagem, num negócio criminoso que enriqueceu uns poucos.
Tal realidade faz parte do rol das páginas negras da história de todos os povos, que escandalizam o homem contemporâneo, em especial depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A escravatura não foi inventada pelos portugueses no séc. XV. Sempre existiu nas sociedades humanas devido aos interesses produtivos e económicos. O Império Romano tinha escravos, assim como os persas e os chineses entre muitos outros. As próprias tribos africanas escravizavam as tribos vizinhas assim como os árabes.
É claro que se torna necessário fazer uma reflexão serena sobre o período colonial mas, tal como o PR a colocou, a questão das reparações é completamente descontextualizada. No limite teríamos que exigir reparações a Itália pela ocupação romana do nosso território, a França pelas invasões francesas, a Espanha pelas invasões de Castela, aos países do Magreb pelos mais de setecentos anos de ocupação da grande parte da península. E os próprios africanos deveriam exigir reparação uns aos outros por se terem escravizado entre si.
Esta nova moda de apagar a história, exigir reparação passadas várias gerações, retirar estátuas de figuras do passado e tentar reescrevê-la – ou pior, corrigi-la – aos olhos da contemporaneidade é mais uma febre dos tempos loucos em que vivemos.
Segundo o Diário de Pernambuco a jovem jornalista Catarina Demony, descendente de Matoso de Andrade e Câmara, terá descoberto o passado esclavagista da família numa conversa casual com a avó, quando tinha dezoito anos. Mais tarde, já enquanto correspondente da agência de notícias Reuters, ela resolveu revisitar tal questão que tanto a incomodava. Como se tivesse que se redimir pelos crimes cometidos pelos ancestrais portugueses há mais de duzentos anos.
Da sua investigação resultou um documentário no qual é exposto o passado esclavagista do tráfico de escravos de Angola para o Brasil. A sua tese é que o racismo latente na sociedade portuguesa é alimentado por um passado maquilhado, por uma narrativa que procura esconder os absurdos perpetrados pelos seus familiares há mais de duzentos anos, como o tráfico negreiro.
Mas foi necessário muito trabalho e persistência na reconstituição histórica desse passado, uma vez que “não havia praticamente nenhum registo nas documentações da época sobre o envolvimento de seus antepassados com o comércio de escravos. ‘Foi uma das coisas que mais me impressionaram, pois eram pessoas com poder em Angola, em Luanda (hoje capital do país), que trabalhavam na Câmara, no Senado. Nada as ligava ao tráfico negreiro, a única coisa que destacavam eram esses cargos’, relata. Fica claro, no entender da jornalista, que havia uma tentativa de eliminar factos da história, como o tráfico de pessoas, e só falar dos escravocratas por meio dos cargos que ocupavam e do prestígio que ostentavam.”
O mais escandaloso, porém, será o fundamento religioso e moral invocado pelos religiosos para a escravidão dos negros africanos. Pensava-se que estariam sob uma maldição divina como descendentes de Cã, filho de Noé, que fora amaldiçoado pelo pai. E isso constituía justificação ideológica bastante para a sua condenação, uma vez que o tráfico destes seres humanos – chegou-se a questionar se os negros teriam alma… – era considerado um instrumento de salvação, daí a prática do baptismo forçado antes do embarque rumo a Pernambuco, no Brasil ou à morte no mar alto.
O entreposto negreiro de Matoso de Andrade e Câmara, apresentava um nicho devidamente equipado com uma imagem de Cristo na cruz e uma pia baptismal na parede, não faltando lá sacerdotes para os ofícios religiosos. Porém, a história ensina que, sempre que a religião e o poder andaram de mãos dadas, o resultado foi péssimo.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ E se Hitler não tivesse assassinado aqueles milhões de judeus?
+ A democracia, as confissões religiosas e os políticos
+A mente tortuosa de P. Brotero
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.