Antes de mais, diga-se que a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) realizada em Lisboa revelou-se um evento coroado do mais completo sucesso. A igreja católica apostólica romana (ICAR) sentiu uma renovação de forças depois da progressiva decadência observada nas últimas décadas e agravada pelo escândalo do abuso sexual de menores por sacerdotes e outras figuras dentro de portas.
Aguarda-se com expectativa a nomeação do novo cardeal patriarca de Lisboa, do próximo bispo de Setúbal e de mais algumas nomeações para se ver que caminho toma a instituição em Portugal, se avança ou se persiste no imobilismo, mas também se realmente a cultura do abuso foi definitivamente enterrada. Espero para ver mas admito a possibilidade de que a JMJ tenha constituído, afinal, uma espécie de exéquias fúnebres da “velha igreja” para dar lugar à “nova igreja”, a igreja de Francisco. Ou não.
Ao proclamar constantemente “Esta é a juventude do Papa!”, os jovens colocaram-se à sua disposição, como um exército espiritual disposto a implementar a visão da Igreja que Francisco prega. O problema é que esta visão, uma vez levada à prática, irá fazer em pedaços a velha igreja do clericalismo, dos jogos de poder na cúria romana, da exclusão das mulheres do sacerdócio, das minorias sexuais, dos divorciados e dos padres casados que querem voltar ao ministério.
Tudo leva a crer que, animada por uma experiência marcante, quando regressar a casa, esta massa impressionante de jovens está destinada a bater contra a parede dos párocos e dos bispos que persistem desalinhados com a visão de Francisco. E este só é tolerado pelos clericalistas por ser um excelente ativo de relações públicas da ICAR enquanto multinacional, e por cair nas boas graças tanto de cristãos como de crentes de outras fés e mesmo de descrentes. Uma espécie de montra que não apresenta realmente o produto em armazém. E como nos últimos tempos a ICAR precisa de boas relações públicas como de pão para a boca…
O antropólogo Alfredo Teixeira perguntava-se recentemente em texto publicado na imprensa se a JMJ seria um festival para jovens ou um acontecimento eclesial. Sem responder propriamente à questão mas levando os leitores a refletir nela, este docente da Universidade Católica acabou por ser execrado por um comentador encartado dum canal televisivo que apenas entende de Direito, mas que se aventura para fora de pé em áreas que não domina. Mas a questão levantada faz todo o sentido e nada tem que ver com o maior ou menor sucesso do evento em si mesmo.
Até que ponto os responsáveis das paróquias estarão dispostos a canalizar a energia e motivação dos jovens no trabalho espiritual e social das comunidades locais de fé? Até onde os bispos irão aceitar a proclamada abertura da ICAR a todos, sem exceção? Em que medida os poderes intermédios estão prontos para trocar a cultura de poder pela cultura de serviço?
É óptimo que a Igreja tenha Francisco como Papa (até quando?), mas ela precisa de muito mais do que um líder global e moral que fala à consciência da humanidade. Precisa de mudar estruturalmente a ICAR e não sabemos se tal coisa será possível numa instituição bimilenária, sendo certo que fácil não é enquanto persistirem nas estruturas de poder homens do tipo do cardeal Burke, com a sua postura ostentatória (o tal da capa magna com sete ou oito metros) e fanáticos resistentes a qualquer mudança.
Dizia o arcebispo de Évora à VISÃO, de forma muito franca e certeira: “O Papa quis lembrar à Igreja portuguesa que a história avança, sem a Igreja ou com a Igreja. Veio lembrar à Igreja portuguesa que se não entrar no comboio da história, fica no apeadeiro.”
Já o país político reagiu a tudo isto de forma curiosa. PS e PSD apoiaram explicitamente, tal como, surpreendentemente, o PCP. Já o IL, Livre, BE e PAN remeteram-se a um estranho silêncio. Mas o mais interessante foi o Chega, completamente ausente. Apesar de ser dirigido pelo “quarto pastorinho” está em rota de colisão com o discurso de Francisco sobre a inclusão, os refugiados e migrantes. O partido guardou-se para vir vender o seu peixe logo no dia seguinte, apesar de reconhecer que a Jornada correu bem.
Nestes dias alguns políticos pareciam traças a voar à volta da luz. Marcelo bateu tudo e todos, desde o cumprimento ao Papa em que quase lhe arrancou os braços, até à atitude de lapa sempre colada ao homem. Não vi o Presidente da República do meu país, vi um devoto quase a babar-se por estar tão próximo do Papa. E tive vergonha.
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