Sejamos objetivos. O mesmo mecanismo psicológico que leva pessoas a sacrifícios duros para conseguir ver o papa Francisco de perto começa por ser o mesmo que leva indivíduos de todas as idades a aproximar-se o mais que podem de artistas e atletas famosos ou políticos carismáticos e a pedir-lhes um autógrafo ou uma selfie.
É sabido que as balzaquianas adoram percorrer o País, e por vezes o estrangeiro, atrás dos artistas da sua eleição como Marco Paulo ou Toni Carreira. Ou que crianças, adolescentes e jovens fazem tudo quanto podem para conseguir um autógrafo ou uma camisola de CR7, Messi ou outro dos grandes atletas de alta competição da sua preferência. No caso das artes performativas, muitos são os que procuram ficar perto do palco onde irão atuar os músicos da sua eleição.
Isto resulta da construção mediática das figuras públicas. Uns são admirados e glorificados pelos seus feitos desportivos ou artísticos e, no caso dos políticos, pelo poder que possuem e representam.
Antes de mais, trata-se de uma idealização. Os fãs admiram tais figuras públicas pela imagem que projetam para fora, pela forma como falam, pelo seu desempenho artístico ou desportivo, pela mundovisão que revelam ou pelos valores que defendem. São profundamente influenciados pela sua forma de estar, de vestir, de pensar e de falar.
Por isso mandam tatuar no corpo elementos gráficos de ligação com a figura em causa, numa espécie de apropriação simbólica do outro. Os soldados portugueses também o faziam na guerra colonial em África, sobretudo para sublinhar a ligação emocional com a figura materna que queriam manter, num momento em que ainda não podiam saber se regressariam a casa inteiros e vivos. Noutros casos, tatuavam as armas da sua companhia numa espécie de ritual de irmandade com os camaradas de armas, como demonstração de um tempo e espaço que estavam a marcar a sua vida através do sacrifício e dos dramas face à iminência da morte.
Depois, há também um mecanismo de projeção. Os fãs gostavam de ser como aquela figura, pela sua performance em palco, pelo seu estilo de vida considerado superior e, em muitos casos, pela sua riqueza. Quase sempre desconhecendo o lado lunar e sombrio de tais figuras. Pensar na remota possibilidade de estarem ali, no lugar deles, fá-los sonhar com a libertação da vida quotidiana mais rasteira a que frequentemente têm direito.
O espetáculo religioso – no sentido litúrgico, simbólico e estético do termo – também não escapa a esta lógica, embora num contexto diferente. Todos conhecemos a influência que líderes religiosos carismáticos exercem facilmente sobre os fiéis. A História recorda-nos casos dramáticos de grupos religiosos de alto controlo que, através da manipulação provocaram todo o tipo de abusos sobre os integrantes desses grupos, levando-os em casos extremos a liturgias de suicídio coletivo como os casos trágicos de Jim Jones ou David Koresh.
No caso de um líder religioso global, como é o caso do Papa Francisco, e na cultura mediática contemporânea, a sua figura assume uma dimensão planetária. Fotografá-lo ou filmá-lo de perto é como reter consigo uma parte dele. Conseguir tocar-lhe ou trocar com ele uma palavra será ainda mais marcante, devido à intimidade do contacto pessoal.
Mas uma boa parte dos que se entregam ao desafio de “ir ver o Papa” fazem-no por razões religiosas considerando que estão em presença de um homem santo, especial, uma espécie de sequela de Jesus Cristo. E aqui deparamo-nos com alguma dificuldade em compreender que o hábito não faz o monge, isto é, as vestes brancas do papado não fazem com que o sumo pontífice que, nas suas palavras, veio do “fim do mundo”, seja mais do que o chefe da igreja católica, eleito pelo colégio cardinalício num determinado momento da história e, portanto, um simples ser humano com especiais responsabilidades.
Diga-se, em abono da verdade, que Francisco tem-se esforçado por dessacralizar a função papal, um cargo que surge tardiamente na história da igreja devido a razões meramente políticas. Ele é um homem simples que, ao contrário de se transfigurar depois de eleito, manteve a sua simplicidade e frugalidade anteriores. Não calça sapatos de marca, não se senta numa cadeira luxuosa, a cruz que carrega não é de ouro e pernoita numa espécie de pensão, dispensando assim o palácio, ao contrário de outros que o antecederam.
Com sinais como estes, Francisco está a dizer que a igreja católica precisa de sair dos palácios e estar entre os pobres e marginalizados, e com isso tem contribuído fortemente para tentar converter a igreja de Roma de uma cultura de poder a uma cultura de serviço. Conseguirá?
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