No primeiro dia de Julho de cada ano, a Holanda celebra o Dag der Vrijheden , também conhecido como Keti Koti (correntes quebradas), um evento que tem a finalidade de celebrar a abolição da escravatura no Suriname e nas Antilhas Holandesas.
Este ano foi diferente porque o rei Willem-Alexander apresentou desculpas públicas pelo “crime contra a humanidade” perpetrado pelos seus antepassados, séculos atrás, quando promoveram o tráfico internacional de escravos. O pedido de perdão foi feito em forma de discurso transmitido em direto no país e naqueles territórios. O desejo de resgatar a boa consciência do país foi ao ponto de o rei ter encomendado um estudo sobre o papel histórico da família real nesse passado negro.
No final do ano passado, já o primeiro-ministro Mark Rutte tinha tido gesto semelhante em nome do governo de Haia, em diversas línguas, tendo então assinalado tanto o sofrimento inimaginável infligido a milhões de seres humanos, como a responsabilidade histórica da Holanda nessa matéria.
O comércio de escravos foi formalmente abolido há 160 anos, mas ainda decorreria uma década até o negócio terminar de facto. A partir deste mês, e durante um ano, os holandeses estão a assinalar o Ano da Memória do Passado Esclavagista.
O jornal Evangelical Focus Europe diz que o Conselho de Igrejas do país reuniu dezanove igrejas e denominações que assumiram culpa pelo papel de muitos cristãos no passado da escravatura e sublinharam o sofrimento infligido aos escravos nas colónias. René de Reuver, secretário da Igreja Protestante da Holanda (PKN) afirmou durante o serviço fúnebre: “Como igrejas contribuímos para a perpetuação da escravatura, por meio da nossa teologia justificámos o abuso de pessoas.”
Declarou-se que as igrejas ainda têm um longo trabalho pela frente para se tornarem comunidades inclusivas, sem lugar para o racismo e a discriminação: “Há esperança para o futuro, pois as igrejas podem ajudar no processamento benéfico do passado da escravatura”.
A pastora Rosaliene Israel, do PKN em Amsterdão, foi mais longe ao afirmar que “as igrejas não só devem assumir a responsabilidade do passado, o que vai para lá de apenas pedir desculpa e perguntar se as coisas estão bem de novo”, em consonância com o tema do evento “Passado compartilhado, futuro compartilhado”.
A grande questão que se coloca é se em determinados setores cristãos ainda hoje certa teologia não persiste em justificar outro tipo de abusos, desta vez sobre as diversas minorias, com a mesma desfaçatez com que no passado se normalizou nos púlpitos a escravatura, o racismo, a xenofobia, o apartheid, a misoginia e tantas outras doenças sociais que batem de frente contra o espírito do Evangelho.
Mesmo em relação a África, alguns setores ainda persistem na teoria de uma pretensa maldição divina sobre o continente, esquecendo que a principal “maldição” foi a colonização dos europeus e o roubo persistente das riquezas naturais daqueles territórios. De igual modo, a dita “maldição” procede da divisão do continente em estados desenhados a régua e esquadro, num exercício colonial de desprezo pelas idiossincrasias regionais, tribais e linguísticas, originando assim problemas que persistem até hoje mas poderiam ter sido evitados.
No passado, os povos europeus colonizaram continentes e roubaram as riquezas aos povos nativos, destruindo-lhes a cultura. Depois condicionaram-nos economicamente comprando as riquezas naturais ao preço da uva e vendendo-lhes mais tarde os produtos acabados por preços elevados, gerando assim lucros imensos à indústria europeia enquanto alimentavam chiques dirigentes africanas corruptas e o povo persistira na miséria. E como se não chegasse, vieram depois os russos, os chineses e outros explorar ainda mais os africanos do que os europeus tinham feito durante séculos.
É por isso que a mensagem “Passado compartilhado, futuro compartilhado” faz todo o sentido. Não basta pedir perdão pelo passado colonialista. É preciso investir na promoção das populações africanas, na educação e na economia local, para que não tenhamos que pagar um preço cada vez mais elevado pelas hordas de imigrantes que de lá nos chegam, fugidos da fome, da miséria e da guerra.
E já agora façam o favor de enviar de vez a “teologia da maldição africana” para o cano de esgoto da História.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.