“Ainda não te cruzaste com alguém como eu. Levavas tanto nessa trombinha, que ganhavas logo amor em ser mulher. Eu quero ver quando os jornaleiros noticiarem que encontraram uma feminista com a boca cheia de formigas no meio do mato. Falas demasiado de ti e dos outros, até ao dia”. Li a mensagem com sobressalto. Não era para mim. Chegou-me vinda de uma mulher, à procura de saber como a denunciar. Uma mulher que teve uma intervenção pública e foi inundada de mensagens de ódio. Esta destacava-se, pela forma descritiva como concretizava a ameaça. Fiquei a pensar na “boca cheia de formigas”.
O homem que a enviou fantasia com a morte desta mulher por causa das opiniões dela. Na sua fantasia, a boca já morta enche-se de insetos. Porque não basta que morra. É preciso que morra simbolicamente. E a boca, mesmo depois de morta, tem de ficar cheia de alguma coisa que a tape, que lhe roa por dentro as palavras e as ideias.
Será só uma fantasia? Inquieto-me. E a ideia é mesmo essa. Que pensemos que pode não ser só uma mensagem, pode ser uma sentença de morte à espera de uma ocasião para ser aplicada.
Recebo várias mensagens com ameaças e insultos. Quase todas de homens. Mas não exclusivamente de homens. Quase todas fazendo referências ao facto de ser mulher, muitas com ameaças mais ou menos explícitas de violação. Resolvi publicar algumas, expondo os perfis (uns talvez falsos outros seguramente verdadeiros), e denunciá-las. É importante que alguém fale disto. É importante que se perceba o esforço que há para calar quem pensa de maneira diferente, mas sobretudo a forma como esse esforço inclui ataques por se ser mulher e ameaças de agressão sexual.
Nenhum dos muitos homens que estão no espaço público que conheço alguma vez partilhou comigo comentários sequer semelhantes. Houve uma vez um, que trabalha na área do desporto, que me mostrou os insultos que recebe. Mas nenhum com um ataque explícito à sua condição de género.
Na maior parte das vezes, os homens que se indignam com estas mensagens – e que são muitos – ficam surpreendidos com a violência destes ataques, precisamente por nunca lhes ter acontecido algo semelhante. Sobretudo, por raramente serem alvo deste tipo de bocas e abordagens mais ou menos agressivas ao vivo. A mim já me aconteceu.
A violência está a ocupar o seu espaço na política. E a misoginia é uma das armas usadas numa guerra que pretende liquidar todas as vozes dissonantes com uma narrativa que se quer impor. Não é a única e nem toda esta violência é dirigida apenas as mulheres. Mas não há como negar: há uma campanha cujos primeiros alvos são as mulheres. E isso não acontece por acaso.
Numa sociedade em que ainda é normal reagir a uma notícia de violação com um “mas o que é que ela estava a fazer ali àquela hora?” ou “por é que ela bebeu?”, é fácil perceber porquê. Porque é permitido. Porque a desqualificação das mulheres é uma coisa que conhecemos bem, que nos está entranhada na carne desde crianças, mesmo quando somos mulheres ou talvez especialmente quando somos mulheres.
Os agitadores deste tipo de campanha farejam aí uma oportunidade. Não só tentam amedrontar e calar os seus alvos, como pelo meio granjeiam mais uns apoios, porque há sempre alguém disponível para entrar nesta conversa das “gajas que têm a mania”.
No dia em que li a notícia de uma mulher que, depois de ter rejeitado um homem que conheceu no Tinder, foi morta com 150 facadas e pontapeada na cabeça quando já estava no chão, no estacionamento do Estádio de Alvalade, estive com uma amiga que puxou do telefone para mostrar o que tinha acabado de lhe acontecer.
Depois de fazer um comentário num vídeo no Facebook, insurgindo-se contra os maus-tratos aos animais, teve em resposta um texto de um homem, com todos os insultos da praxe, aconselhando-a a calar-se e defendendo que o mal começou quando a Democracia deixou que as mulheres fossem para a política e para o jornalismo. A minha amiga não é política nem jornalista.
“Deves ser uma daquelas cabras a favor do aborto”, continuava o comentário, numa frase que parece completamente a despropósito, mas não é, e num tom de desqualificação e ameaça.
Homens (e mulheres) como este não me amedrontam nem me calam e não calarão as mulheres que citei neste texto. Mas por cada uma que os enfrenta, haverá uma ou duas que talvez se encolham. E cada milímetro que cedermos, será aproveitado por eles. E é por isso que escrevo este texto, mesmo que muitos me digam para ignorar. Porque não, não só pessoas doentes. Há aqui um projeto político, que não pode ser ignorado.
Eu sei que eles não são a maioria. Eu sei que talvez nunca venham a ser a maioria. Mas eles contam com uma maioria que se cale, que se encolha, que os deixe ocupar todo o espaço com os seus gritos, que aceite que não vale a pena enfrentá-los, que os trate com a compaixão que merecem os que não sabem o que fazem ou se entretenha a tentar compreender os motivos profundos do seu ódio. Não contem comigo para isso. Não estou cá para isso.