Os ombros estão curvados, não lhes conseguimos ver os olhos. São como bichos-de-conta, enrolados para dentro. Ouvidos tapados pelos auriculares. Dedos que deslizam, mecânicos. Estão à minha frente, sentados pelos bancos da carruagem de metro, mas cada um deles está no seu próprio lugar, tão longe daqui, arrastados pelos vídeos que se sucedem nos ecrãs, uns atrás dos outros, pelas fotografias que os impelem a gostar automaticamente, maquinalmente, freneticamente. E o gostar vale o quê? A indignação instantânea. E os dados que vendem sem saber, alimentando uma máquina milionária que os suga, lentamente e em silêncio.
É um exercício interessante tirar os olhos dos ecrãs e perceber como à nossa volta quase ninguém vê o que o rodeia. Nas paragens de autocarros, nos bancos do metro, nos carros que travam nos semáforos, nas passadeiras. Raramente alguém é naquele momento mais do que um corpo presente, com o espírito noutro lugar, um lugar que é sempre o mesmo e nunca é aqui. O aqui está a deixar de existir. E o nós é uma coisa que se esboroa, uma coisa meio inventada, a companhia de um fantasma que não existe realmente.
É nesta solidão que fica o chão onde medra o medo que alimenta o ódio. Deixamos de existir se sentirmos que ninguém está a ver. Precisamos que nos vejam, procuramos quem nos veja, quem nos oiça, quem nos assegure de que o que sentimos é o que está certo e é justo. E ouvimos o eco das nossas vozes repetido tantas vezes que ficamos surdos ao que foge a este refrão. Odiamos que nos contrariem, que nos mostrem aquilo que não queremos ver. Não aceitamos e não vemos.
O que importa a verdade? Nada, porque ela não nos sossega. Se o que nos inquieta é o salário que não estica, o médico que não nos atende, a escola onde falta o professor, a casa que não temos como pagar, a indignação tapa-nos o buraco da alma, o ódio dá-nos o conforto da explicação.
Recebo muitas mensagens dos que se sentem invisíveis e me gritam em maiúsculas e sem pontuação o que acham ser a razão do seu mal-estar. “Como pode ter a desonestidade intelectual de dizer que a imigração descontrolada massiva de milhares de imigrantes não causa impacto na vida dos portugueses?”, pergunta-me alguém, aconselhando-me a “sair do capitalismo e conviver com o blablá do multiculturalismo”.
A internauta indignada diz que me vai fazer um desenho, “pode ser que aprenda”, sobre os males deste país. As casas estão caras? “Porque há mais procura de imigrantes”. Não há creche? “Os imigrantes têm tudo pago”. Faltam professores? “Há demasiadas crianças imigrantes”, grita-me em caixa alta. Transportes lotados? “A maioria é imigrantes”. Mais trânsito? “Só em 2023 mais 73 mil cartas de condução a estrangeiros”. Demora no atendimento nos serviços públicos? Falta de médicos? “Blablá mais imigrantes”.
E o mundo está explicado, que esta senhora não come “gelados com a testa”, e está “farta de hipócritas, para não dizer outro nome”.
A ideia da escassez vira-nos para o mais pobre, para o de baixo, que imaginamos como indigente, preguiçoso, talvez até criminoso. Se estamos mal, é porque alguém deve estar melhor. E porque é que são os de baixo os culpados? Porque os de cima estão bem porque são melhores que nós. Têm mérito. Não são eles que se acotovelam connosco nos transportes apinhados, que esperam à nossa frente na fila do hospital, que põem os filhos na mesma escola. Não são concorrência. E nem gostamos de pensar muito neles, porque nos lembram de tudo o que está errado connosco, porque a culpa é nossa.
Sim, a culpa. Toda a gente sabe que o falhanço e o sucesso dependem inteiramente do esforço. Exceto para os imigrantes, para esses não, tudo lhes é dado. Vivem sem trabalhar, mesmo que os estejamos sempre a ver a fazer os trabalhos que mais ninguém quer. Roubam-nos as casas, mesmo que durmam em camaratas em regime de cama quente, com preços dignos de alojamentos de luxo. Vivem de subsídios, mesmo que recebam muito menos apoios sociais do que aquilo que descontam com o seu trabalho. Tiram-nos o lugar na creche e na escola, mesmo que depois nos aflija que só venham para cá homens sozinhos e tão escuros, que só podem ser ameaçadores. Matam-nos e esfolam-nos, mesmo que em 2024, os dados da PJ revelem que 20% dos homicídios aconteceram dentro das famílias.
As empresas vão pagar menos 420 milhões de euros em IRC. O IRS Jovem dá um desconto de 525 milhões de euros, quase todo para os que mais ganham. Em 2023, os benefícios fiscais às empresas custaram-nos 3.139 milhões de euros. E este ano os residentes não habituais vão ter uma borla fiscal estimada de 1,7 mil milhões de euros. Nada disso nos indigna, mesmo que não nos cheguem nem as migalhas desse bodo aos ricos. Porque, no fundo, eles merecem. E isto é como jogar numa raspadinha, pode ser que cobrando menos se venha a receber mais. Nunca aconteceu, mas nunca se sabe.
Não, nós não comemos gelados com a testa.
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