Quando entrei naquela casa, o chão tinha acabado de ser lavado. A tijoleira cheirava a detergente e tudo estava impecavelmente limpo e arrumado, cada coisa no seu sítio e no meio um vazio gigante. Aquela mãe tinha acabado de ficar sem os seus sete filhos menores e abria-me a porta para que lhe contasse a história. Nas semanas seguintes, recebi cartas, e-mails e até visitas na redação de pessoas que tinham histórias parecidas. Cheguei a ir a uma casa, longe de tudo, num bairro muito pobre e periférico, aonde não chegavam transportes públicos, e onde uma mãe me abriu as gavetas de uma cómoda para me mostrar as roupinhas de um bebé que nunca conseguiu trazer da maternidade para casa, por ter já outros dois filhos adolescentes sinalizados.
Como não sabia fazer outra coisa, escrevia. Escrevi sempre as histórias, na esperança de que contá-las ajudasse alguma coisa. Sabia que quem me procurava esperava isso de mim. Vinham ter comigo quando tudo o resto tinha falhado. Os que se sentiam injustiçados, os que não tinham a quem recorrer, os que estavam indignados, os que queriam travar a corrupção. Todos, cada um à sua maneira, viam em mim uma parte da salvação.
Eu duvidava. Mas ouvia e escrevia. Ouvir é sempre a primeira coisa que se pode fazer por alguém que precisa de ajuda e já perdeu toda a esperança. Quando nos dispomos a ouvir quem está desesperado, começamos a ajudar. Porque lhes parece que já mais ninguém os ouve e que aquele problema sem solução começa a ser invisível para todos e, por isso, impossível de partilhar. À medida que tomava notas, ia sentido que uma parte daquele fardo se desfazia. Era como se começássemos a partilhar o peso.
Então, atirava-me ao computador e escrevia. Sentia-lhes a impaciência. “Quando é que sai? Quando vai ser publicado?” A dúvida sempre era uma distração para alguns, para outros mais uma ansiedade. “Nunca vai sair, pois não? Desistiu da história?”
E então, às vezes muito tempo de depois, lá aparecia em letra impressa sobre papel de jornal ou revista ou num ecrã, debaixo de um título sempre demasiado pequeno para conter todo o problema, o texto. Estava cá fora. E a ansiedade de quem me tinha passado a história estava agora em mim. Agora, era eu quem sustinha a respiração à espera das reações.
Às vezes, não acontecia nada. Outras vezes, alguma coisa se resolvia. Quase sempre me agradeciam. Mas também havia quem se esfumasse para sempre sem me chegar a dizer se o meu texto tinha servido para alguma coisa. Raramente, alguém se queixava. E eu ficava sempre na dúvida: teria mesmo feito a diferença?
Há muitas maneiras de fazer jornalismo. Mas esta é aquela que mais se parece com um serviço. E é uma que tende a ser esquecida. Poucas pessoas param para pensar na importância que pode ter contar a história de alguém.
Raramente, a história de alguém é só dessa pessoa. Na maior parte das vezes, o que fazemos é dar uma cara e um nome a um problema em que até aí ninguém reparou. É esse corpo que torna visível aquilo que tendíamos a ignorar coletivamente.
Foi quando escrevi pela primeira vez o nome de Odair Moniz que ele deixou de ser o “suspeito” anónimo que vinha descrito no auto policial. E foi quando lhe vimos a cara que nos interrogámos sobre como se pode acabar morto depois de ter desrespeitado uma ordem da polícia. Cada um pode ter tirado conclusões diferentes sobre essa interrogação, mas foi quando o jornalismo contou essa história que descobrimos a estatística segundo a qual uma pessoa negra tem 21 vezes mais probabilidades de ser morta pela polícia em Portugal do que uma pessoa branca.
Contar as histórias, procurar as causas, revelar os números, explicar os mecanismos, expor versões contraditórias, confrontar quem tem poder. É isso que faz o jornalismo. É isso que torna o jornalismo diferente de qualquer outra forma de comunicação.
Escrevo este texto em dias de grande perturbação para a redação da VISÃO. Vivemos numa enorme incerteza. E haverá quem culpe o mercado, quem nos diga que é o futuro inexorável que aí vem, com os seus algoritmos e inteligências artificiais, quem ache que não faremos falta e quem se regozije com a possibilidade de ver desaparecer quem interroga, quem incomoda, quem escrutina e expõe. A todos gostaria de pedir que parassem para pensar e imaginassem esse futuro sem jornalismo.
Não é um exercício difícil. É só voltar atrás. Ao passado em que as atrocidades se cometiam em silêncio, os povos eram comandados sem questionar, as verdades eram divinas e o poder uma coisa obscura.
Foram precisos séculos, revoluções e muitas lutas para fugir a essa escuridão. No que me toca, vou tentar não deixar que a luz se apague.