Tenho à minha frente o raio-x do crânio de uma criança pequena. Vê-se nitidamente uma bala. Apontada para baixo em direção à nuca. Sinto uma náusea. Acabei de deixar os meus filhos na escola e, enquanto bebo um café, vejo as imagens partilhadas com o The New York Times por uma médica, chamada Mimi Syed, que trabalhou em Gaza entre 8 de agosto e 5 de setembro. É fisicamente doloroso ler os relatos compilados para o jornal por um outro médico, Feroze Sidhwa, sobre o que se passa nos hospitais da Palestina. Mas não posso desviar os olhos. Não podemos desviar os olhos.
Feroze Sidhwa já foi voluntário na Ucrânia e no Haiti. Mas nada o preparou para o que viu em Gaza. Durante quase todos os dias em que esteve na Palestina, viu entrarem pelas urgências crianças pequenas alvejadas na cabeça ou no peito. “Na altura, assumi que isto devia ser obra de um soldado particularmente sádico a lutar nas redondezas. Mas, depois de regressar a casa [nos Estados Unidos], conheci um médico que tinha trabalhado noutro hospital em Gaza dois meses antes de mim”. Nesse encontro, Sidhwa partilhou o seu choque perante a quantidade de crianças que vira baleadas na cabeça. “Sim, eu vi o mesmo. Todos os dias que lá estive”, respondeu o outro médico.
A resposta e a forma como a Palestina se tornou um buraco negro para a informação, graças às restrições cada vez maiores ao trabalho dos jornalistas naquela zona, fez com que Feroze Sidhwa fosse à procura de outros médicos que, como ele, tivessem estado a trabalhar na região e estivessem dispostos a partilhar o que viram. Falou com 65, dos quais 57 aceitaram contar as suas histórias, identificando-se, enquanto oito pediram anonimato “ou por ainda terem familiares em Gaza ou na Cisjordânia ou por temerem sofrer retaliações nos seus locais de trabalho”.
O que se segue são páginas e páginas de histórias que me deixaram atordoada. Falam de crianças que pedem para morrer, meninos a quem são feitas amputações sem analgésicos e não vertem uma lágrima, médicos que numa única noite recebem seis crianças com idades entre os cinco e os 12 anos cada uma delas com uma bala na cabeça ou uma bebé de 18 meses também com o crânio desfeito por um tiro.
“Vi muitas crianças. Na minha experiência o ferimento era quase sempre na cabeça”, diz o Dr. Ndal Farah. “Um dia, quando estava nas urgências, vi uma criança de três anos e outra de cinco, cada uma com um tiro na cabeça. Quando perguntei o que se tinha passado, o pai e o irmão disseram que tinham ouvido dizer que Israel estava a retirar de Khan Younis e resolveram voltar para ver se tinha sobrado alguma coisa da sua casa. Havia, contaram, um sniper à espera, que baleou as duas crianças”, relata o Dr. Khawaja Ikram.
O pessoal médico que esteve em Gaza fala de fome extrema, de mães incapazes de amamentar os filhos por estarem desidratadas e subnutridas que imploram por leite de fórmula que não existe, de operações feitas com material reutilizado sem qualquer esterilização, de médicos e enfermeiros que não têm sequer como lavar as mãos. Há um buraco que se me abre no peito enquanto leio estes relatos.
Vem-me à cabeça o título do livro sobre colonialismo do sueco Sven Lindqvist, que é ao mesmo tempo um grito de desumanidade e um resumo de um projeto político. “Exterminem todas as bestas”. É uma frase que Lindqvist vai buscar ao romance de Joseph Conrad O Coração das Trevas, escrito em 1899, numa altura em que a colonização era apresentada como um programa de progresso e civilização.
O grau de extermínio e crueldade de que são capazes colonizadores e nazis só é suportável depois de se desumanizarem as suas vítimas. E isso é verdade em qualquer época histórica. Só depois de olharmos para os outros como “bestas” os podemos aniquilar, convencidos até de que o fazemos por um bem maior. E esse é um mecanismo que conhecemos bem e que podemos compreender.
O que é absolutamente incompreensível para mim é a forma como as democracias liberais ocidentais estão a fingir que não veem o que se passa na Palestina. Não é que não ignorem também os horrores do Saara Ocidental, do Sudão ou de outros pontos do globo. Mas Gaza é, apesar de tudo, um horror que desfila perante os nossos olhos indiferentes todos os dias. E escolhemos ignorar.
“Não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que sabemos e tirar conclusões”, escreveu Sven Lindqvist, que morreu em 2019.
Uma das conclusões que mais me inquieta é a sentença de morte que estamos a escrever à democracia. A política convive com um certo grau de hipocrisia a que em jargão diplomático se chama realpolitik, mas o sistema em que vivemos não sobreviverá à escalada da desumanização, à destruição da mais básica decência, à aniquilação de direitos que consagrámos na lei depois dos horrores do Holocausto nazi.
E, se durante muito anos, convivemos com massacres e horrores fora do mundo ocidental, o globo encolheu hoje a tal ponto que é impossível que essa barbárie não nos contamine a todos. Nós somos os bárbaros. Sempre fomos. Mas seremos também as bestas. Hoje, são os filhos de Gaza com as cabeças desfeitas por balas. Amanhã serão os nossos. Estamos a abrir o caminho para isso.
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