Em 1988 os sonhos já se tinham desmoronado há muito. E Margaret Thatcher, símbolo desse mundo novo de arranha-céus espelhados, yuppies de fatos de bom corte e moral predatória, declarou que “a sociedade não existe, só existem indivíduos e famílias”. Apesar disso, Patti Smith lançou nesse ano um álbum com uma canção que desafiava o ar do tempo. People have de power, cantava Smith.
“I believe everything we dream/ can come to pass through our union /we can turn the world around /we can turn the earth’s revolution /we have the power/ People have the power”. A crença no poder coletivo pode ser uma utopia revolucionária, mas é também em grande medida a forma como nos é vendida a democracia representativa que tem sido a norma nos últimos 50 anos na maior parte dos países ocidentais.
Nas últimas décadas, o poder nestas partes do mundo tem sido exercido sobretudo através de um consenso fabricado. Somos convencidos a aceitar as regras, mais do que coagidos a submeter-nos a elas. Sob esses pressupostos, as pessoas passaram a cidadãos, sujeitos de direitos e liberdades individuais. E acreditaram numa utopia de progresso e crescimento até à eternidade. Esse passou a ser o sonho, que nos foi apresentado como realista.
Muitas das tensões a que assistimos hoje nas democracias ocidentais têm origem nessa crença profunda. Sentimo-nos titulares de direitos, temos expectativas que nos disseram ser aceitáveis. Mas elas estão a embater nas barreiras de quem tem o poder, que nos começa agora a impor limites onde eles antes não existiam. São limites que põem em causa o Estado Social e, com ele, o direito à saúde e à educação, mas também à habitação e ao apoio no desemprego, que julgávamos ter garantidos.
A erosão dos direitos causa uma sensação de desorientação que nos impele para narrativas de ódio, para soluções populistas, para a contestação ao sistema, mesmo que nos seja óbvio o quão inconsequente é essa contestação. Deitamos mão ao instrumento que nos disseram ser uma arma: o voto.
Votamos, portanto. Somos chamados às urnas, acreditando firmemente que cada homem e cada mulher têm um voto e que, todos somados, terão o poder de mudar o mundo. “People have the power”, dizem-nos.
O que está a acontecer em França é uma brecha nessa narrativa. Contados os votos, há uma maioria relativa, não muito diferente da que existia antes de os franceses irem às urnas há quase um mês. Só que desta vez ela não vale.
Numa entrevista ao canal France 2, o Presidente Emmanuel Macron explicou que não pretende indigitar Lucie Castets, a socialista indicada pela coligação de esquerda que venceu as eleições. “O nome não é a questão. A questão é: que maioria pode surgir na Assembleia?”, perguntou, depois de semanas em que a ausência de um candidato assumido pela Nova Frente Popular parecia estar na origem do impasse. Qual é então a questão de Macron? “A desordem”.
“Até meados de agosto, não estamos em posição de fazer alterações, porque iria criar desordem”, disse candidamente o francês. Os Jogos Olímpicos, que decorrem em França, a fragilidade de um Governo que, acredita, cairia à primeira moção de censura, e a necessidade de “reformas” fazem parte das justificações de Macron. E nos media franceses já se aventa a possibilidade de o novo Executivo ser um “Governo técnico”, nomeado lá para setembro.
A democracia francesa sustém, portanto, a respiração. Os deuses das reformas falam mais alto. Os franceses que vão a banhos e confiem nos poderes iluminados do Presidente que ignora o facto de no passado já terem existido executivos minoritários e maiorias legislativas de sinal contrário ao campo presidencial sem que isso tivesse levado a esta mudança das regras do jogo.
No Reino Unido, a vitória esmagadora em número de deputados do Partido Trabalhista mascara a escassez de votos nesse partido (que só subiu 1,7% em relação às últimas eleições que perdeu) e uma espetacular subida da extrema-direita do Reform UK. E, nos Estados Unidos, mesmo que entretidos a olhar para sondagens que dão a vitória a Kamala Harris, sabemos que é possível ser, como Hillary Clinton, o candidato mais votado e não chegar a Presidente.
“E o povo, pá?”. O povo, diziam os Homens da Luta em 2011, “quer dinheiro para comprar um carro novo”.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ A orelha de Trump, o nariz da Cleópatra e uma bola de ténis
+ “É um país estranho, a França”. Será mesmo?
+ Há fome no jardim europeu e nós estamos a ignorá-la
+ Os de baixo contra os de cima, os de cima contra os de baixo