Gerir dois anos de sondagens que davam aos trabalhistas vinte pontos percentuais de vantagem sobre os conservadores é, provavelmente, um caso de estudo. Ter a noção do descalabro britânico pós-Brexit e não conseguir derrubar a maioria parlamentar, acompanhar as lutas internas conservadoras sem que as mesmas clarificassem um rumo que merecesse, pelo menos, algum espírito de compromisso com a oposição, ou assistir ao declínio político dos líderes e membros do governo, uns atrás dos outros, e não conseguir derrubá-los numa moção de censura, é uma gestão complexa para qualquer partido de poder. Mas é assim o sistema parlamentar britânico, tendencialmente promotor de estabilidade política, de maiorias, até que se torne insustentável a posição do líder do governo, seja por traições dentro do partido, do governo ou da bancada. Significa isto que a linha que separa a pretensa estabilidade do embaraço com um deprimente espetáculo partidário pode ser muito fina, o que em último caso não protege o próprio sistema.
É evidente que este tem virtudes. A começar pelo princípio da estabilidade, o qual dota de condições de durabilidade a condução das políticas públicas. Tal como blinda a legitimidade democrática de um governante através do seu vínculo parlamentar. Ou o conhecimento prévio pelos eleitores de quase todos os futuros titulares do executivo, depois de assumirem posições-sombra na oposição. Três princípios que outros sistemas poderiam adotar em benefício da sua qualidade democrática e da relação com os cidadãos. Tudo num sistema eleitoral onde os círculos uninominais aproximam eleitos e eleitores, mas também iludem a representatividade social dos partidos, que numa lógica puramente maioritária deram aos trabalhistas 65% dos lugares na Câmara dos Comuns com 34% dos votos. Ou aos nacionalistas de Nigel Farage 1% dos mandatos com 14% dos votos e mais de 4 milhões de eleitores, de longe o terceiro partido mais votado. E de Keir Starmer, com 9 milhões e 700 mil votos, ter tido mais 209 deputados do que Jeremy Corbyn há cinco anos, com 10 milhões e 200 mil votos. Bem sei, as regras são estas, mas talvez valha a pena não perdermos também a dimensão sociológica desta eleição se quisermos dar respostas com maior precisão ao descontentamento antissistémico.
Dito isto, deixem-me ir ao ponto fundamental que vos queria trazer hoje: a oportunidade que esta vitória trabalhista abre para o Reino Unido, para a União Europeia e, também, para Portugal. Começando pelo estilo de governação, certamente menos histriónico, cortando com o populismo, a crueldade e a incompetência que definiram os governos conservadores ao longo de quase toda a última década e meia. O cinzentismo de Starmer é bem-vindo, contraria o ar dos tempos e, espera-se, desvia o cansaço das atenções fúteis para a seriedade das propostas, a ética no exercício de cargos públicos, a competência nas soluções políticas. Se Starmer falhar esta oportunidade, com a maioria de que dispõe, os britânicos responderão com estrondo ao fracasso consecutivo dos dois grandes partidos do seu sistema. Neste sentido, a social-democracia tem agora a oportunidade de se regenerar no estilo, no propósito e no conteúdo, influenciando positivamente outros partidos europeus.
Sem intenção de reverter o Brexit, tema de que fugiu na campanha para não alienar a vitória no Norte de Inglaterra, Starmer tem, no entanto, uma predisposição bastante mais construtiva com a UE do que os seus antecessores. O manifesto eleitoral é claro sobre a reconstrução de alianças com Alemanha e França, sobre a melhoria no comércio e investimento com a União, sobre o papel a desempenhar na segurança europeia, sobre o valor insubstituível do multilateralismo. David Lammy, o novo ministro dos Negócios Estrangeiros, que fez campanha pela manutenção do país na UE, foi a Berlim na primeira deslocação ao estrangeiro, horas depois de entrar em funções, seguindo-se Varsóvia e Estocolmo. É esta dinâmica que Bruxelas tem de aproveitar para reintroduzir o Reino Unido nas ações mais relevantes da sua segurança e prosperidade coletivas, como a indústria de defesa, a inovação tecnológica ou a previsibilidade comercial. Mas também Lisboa, pela relação histórica que tem com Londres, materializando com outro vigor o memorando bilateral de cooperação alargada, assinado em 2022, e que nos posiciona como um dos Estados-membros que melhor soube antecipar as vantagens da preservação desses laços.
Com os EUA em brasa, a França ingovernável, a Alemanha fragilizada e a Rússia na máxima brutalidade, ter este Reino Unido o mais próximo possível ajuda a preencher um triplo vazio: de segurança, de humanismo, de estabilidade. Não desperdicemos a oportunidade.
Norte
Desde 2010 que os trabalhistas não venciam na Escócia, provocando uma queda de 80% nos mandatos do SNP. Frustração com o segundo referendo, escândalos, três líderes num ano, e hostilidade aos conservadores explicam o resultado.
Sul
Os protestos no Quénia resultam do aumento dos impostos, custo de vida e cortes em subsídios, num país que destina 65% das receitas para pagamento da dívida externa. O garrote alastra em África, a Europa tem de olhar para isso de vez.
Este
Masoud Pezeshkian venceu as presidenciais no Irão, apesar da histórica baixa adesão às urnas. Médico e antigo deputado e ministro, é visto como um “reformista”, num sistema dominado pelo líder supremo e a sua corte teocrática.
Oeste
O Supremo Tribunal entrou na campanha ao decidir, por maioria de juízes conservadores, conceder imunidade a Presidentes mesmo depois dos seus mandatos, protegendo assim Trump e minando de vez um sistema em declínio moral.
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