Uma potência não tem apenas vantagem por ser territorialmente imponente, usar da agressividade quando quer, ou fechar a torneira do gás quando pode. Também exerce influência quando conhece melhor os outros do que estes a conhecem a ela. Dou-vos um exemplo, em dois atos.
No meio da crise ucraniana, que também mascara crises internas russas, e com negociações diplomáticas a decorrer em vários eixos, Putin teve há dias uma reunião online com as grandes empresas italianas expostas aos efeitos corrosivos da possível aprovação de sanções mais pesadas, sempre em cima da mesa europeia, à falta de outros instrumentos de coerção. Ao contrário do que habitualmente sucede, Putin não delegou num subordinado a condução dos trabalhos e chamou a si o protagonismo. Já os empresários italianos fizeram orelhas moucas a Mario Draghi, que não queria que a reunião acontecesse, avaliada com mais um sinal da fragmentação europeia em cima das evidências que sobretudo Berlim e Budapeste têm suscitado. Ato contínuo, o Kremlin fez saber que tinha já marcado um outro encontro para inícios de março, desta vez com empresários alemães vinculados aos negócios bilaterais. E não são poucos. Não consta que ninguém do novo governo alemão tenha levantado objeções capazes de sensibilizar o mais emocional dos empresários. Também não consta que qualquer líder europeu tenha reunido com empresários russos, fazendo valer a condição de igual dependência que existe entre consumidores do lado de cá e produtores de energia do lado de lá. Às vezes, parece que nos esquecemos de que também a Rússia precisa dos mercados europeus para recuperar a economia.
Esta passada de Putin sobre Roma não é, evidentemente, inocente. O primeiro-ministro Draghi tem cosido com uma habilidade singular uma hipergeringonça totalmente contranatura de seis partidos, que só excluiu os fascistas de Giorgia Meloni, embora lá tenha incluído outros mais domáveis liderados por Salvini, um dos maiores fãs do senhor Putin que esta União deu ao mundo. Apesar disto, esse governo de salvação nacional tem tido o único propósito de institucionalizar uma solução com apoio parlamentar alargado merecedora do envio das primeiras tranches daquela que é a maior fatia nacional do PRR comunitário (190 mil milhões de euros de 750 mil milhões), com a expectativa de credibilizar Itália nos mercados financeiros e esbater aquele que foi, durante 2020, o epicentro da crise Covid. Draghi tem conseguido o impossível: segurar o governo, credibilizar Itália, cumprir metas legislativas que acionem o envio das verbas, pôr Itália a crescer 6% no último ano e vislumbrar uma redução da dívida que vai nos astronómicos 150% do PIB. É por puro pragmatismo que o governo se aguentará até às legislativas de 2023 – ano em que regressam as rígidas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, se, como querem Draghi e Macron, não forem revistas até lá –, tal como foi por pura intuição pragmática que os grandes eleitores acabaram, há dias, por reeleger o Presidente Mattarella à oitava volta da gôndola.
A estabilidade trazida por Draghi tornou-se o principal instrumento da oportunidade reformista de um país permanentemente adiado. Estabilidade esta que tenderá a vergar à medida que cada partido começar a olhar para o umbigo mais perto das próximas legislativas, o que mostra como são efémeros os atuais ciclos políticos para permitirem reformas de fundo. E, quando digo reformas, não falo em cortes cegos nisto ou naquilo, a que muitos bullies da política contemporânea tentam reduzi-las. Falo de cadência de medidas com humanismo, de diálogo institucional permanente, de integrar parceiros sociais, de antecipar os impactos duradouros de determinado passo estratégico, de comunicar os seus méritos, envolvendo as comunidades.
Popularidade, legitimidade e poder reforçado não podem significar arrogância, altivez ou alienação. Muito menos negligência por descolamento da realidade. Pelo contrário: exigem mais nervo para enfrentar a responsabilidade acrescida, uma apurada visão estratégica para preparar um país para a curva da recuperação económica, social e anímica, e uma credibilidade à prova de bala para não desbaratar a confiança recebida.
Mario Draghi talvez seja a melhor destas sínteses na atual Europa. Veremos se será o modelo a seguir por outros.
Norte
Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, candidatou-se a governador do Banco Central da Noruega no meio de uma das maiores crises da Aliança. Não vale a pena acrescentar mais nada.
Sul
Em África, só 10% da população está totalmente vacinada, dificultando a normalização económica, a paz social e a estabilidade política.
Este
A Lituânia permitiu a abertura da representação diplomática de Taiwan, novo passo no despique com Pequim. David contra Golias no mundo dos cínicos.
Oeste
A melhor descrição de Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo morto pela Covid, doença que negava, é de Ruy Castro: “Um imbecil para todos os filósofos, um filósofo para todos os imbecis.”
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