Portugal é uma nação marcadamente católica e de culto mariano. Neste contexto, o fenómeno Fátima, sustentado nas ‘aparições’ de Nossa Senhora aos três pastorinhos, é, sem dúvida, uma manifestação de intensa religiosidade popular, uma efervescência religiosa coletiva, na lógica do sociólogo Durkheim.
Na discussão deste importante acontecimento a questão central é: por que motivo Nossa Senhora escolheu Portugal para se ‘manifestar’ e, mais do que isso, alterar a trajetória histórica do País? Quais foram as razões sociais, económicas e religiosas das suas aparições?
Entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, Cova da Iria foi palco das denominadas “aparições de Maria”. O relato dessas experiências místicas ocupou as primeiras páginas dos jornais. Fátima torna-se, assim, no mais importante acontecimento religioso português do século XX.
Quanto às razões religiosas, esse episódio não surpreende; há relatos populares de anteriores ‘aparições’ e mensagens da Virgem Maria e, por isso, o culto mariano já se encontrava fortemente presente na cultura católica portuguesa, principalmente no interior do país, com as suas inúmeras festas, arraiais, romarias e peregrinações.
As condições históricas e sociais eram extremamente propícias para o surgimento espontâneo (ou, em outra versão, para a criação oficial) deste fenómeno. Em 1910, ocorreu a queda da Monarquia, de base católica, e a Implantação da República, de tendência anticlerical. Em 1911, é promulgada a Lei de Separação Estado-Igreja. Ou seja, a Igreja Católica perdia avultados bens económicos e espaço de poder político – mas Nossa Senhora veio ao socorro da Igreja. Em 1917, o vulnerável povo português passava por forte privação material, fome, doença e milhares de mortos, vitimados pela Guerra Mundial e pela gripe espanhola. O interior, em particular, era analfabeto e com grande atraso económico, onde reinava uma pobreza generalizada.
Em resposta ao anticlericalismo, a Igreja Católica, agora reforçada com a valiosa ajuda de Nossa Senhora, reage contra a laicização oficial do Estado. Assim, o período de 1917 (com o início do comunismo na Rússia) a 1930 foi marcado pela restauração da histórica ‘identidade católica’ e um discurso de cariz nacionalista, antirrepublicano, anticomunista e anti ateísta.
Com a construção de uma narrativa oficial das aparições, a Igreja Católica passou a ter o controlo total do fenómeno Fátima. Na verdade, ao longo da história – desde as aparições de 1917 até hoje -, a Santa Sé, juntamente com o apoio do seu aliado Estado português (constitucionalmente laico) foi mudando e moldando a ‘mensagem’ inicial das aparições, de acordo com o contexto histórico e dos seus interesses.
Após a consagração por parte do Vaticano e de Salazar, o Santuário de Fátima tornou-se o ‘altar do mundo’. É extraordinário como, no início, uma prática religiosa local, de raiz popular e cunho rural, rapidamente teve uma forte e alargada adesão social, ganhando projeção nacional e, posteriormente, uma dimensão mundial.
Portanto, historicamente, a união entre a Igreja Católica, a Santa Sé e o Estado português é uma relação em que as três instituições ficam sempre a ganhar, com grandes benefícios económicos e políticos. E o católico povo português? Bem, o povo fica feliz, subjugado pela trilogia que marca o ethos nacional: Fado (destino), Futebol (entretenimento) e, acima de tudo, Fátima (fé).
Com a secção ‘Sociologia do Quotidiano’ pretende-se tratar acontecimentos do dia-a-dia, através de uma análise dos processos do funcionamento e transformação da sociedade, dos diversos comportamentos e práticas (individuais e de grupos) da vida quotidiana, incluindo as interações sociais e políticas, onde se jogam os interesses (que por vezes conflituam) dos diferentes agentes sociais.