Há dias, numa conversa entre colegas de trabalho, veio à baila o tópico de eleição nesta altura do ano: as férias. Esse período de tempo em que é possível desligar do registo mental do “negócio” – ou negação do ócio – e entrar noutro, onde as rotinas se alteram ou ganham outro vigor e outro sentido. Libertamo-nos do que conhecemos ou, pelo contrário, reproduzimos esse conhecido noutro lugar. Ainda não se falava de globalização, nem de mobilidade e, menos ainda, da democratização dos meios de transporte, dos guias e roteiros para todos, dos serviços da economia social (Airbnb, Uber e afins), dos charters e low costs e do check in feito através de wi-fi. Viagens a sério eram sempre sem telemóvel. E tinham a paricularidade de acontecer num lugar de cada vez. Nada de estar sempre em todo o lado, mesmo quando não se está, fisicamente falando.
Quando vamos de férias, entramos em férias (o inverso também se aplica), mas nem sempre se passa assim. A indústria do turismo, a gentrificação e as filas infindáveis nos aeroportos durante os meses de verão contribuem para que uma imensa minoria torça o nariz à ideia de viagem entendida como evasão, descoberta e expansão de limites pessoais.Estar de férias é uma atitude. Sentir-se em viagem desperta o sentimento de evasão e a busca do diferente, que também habita em nós e que em nada se confunde com a ideia de aventura prometida na promoção de roteiros e programas turísticos. Entre o prato e o café, veio o desabafo, em tom nostálgico: “Hoje já não se fazem viagens a sério.”
O Caminho é a Viagem
O que se entende por viagens “a sério”? Assim, de repente, ocorrem-me os Descobrimentos. As histórias, reais e ficcionadas, de escritores com “alma nómada”. Jack Kerouak (Pela Estrada Fora). Somerset Maugham (O Fio da Navalha e O Véu Pintado), Tiziano Terzani (Disse-me um Adivinho). Não vou aqui falar da realidade virtual, mas já me confessaram que não há viagem melhor do que a do gaming, em que nós somos os nossos avatares e vivemos, como eles, utopias e distopias, saindo delas intactos e preparados para outra.
Escapar às rotinas mundanas é um caminho multidireccional e, não raras vezes, necessário à criatividade e ao crescimento pessoal. O problema só se coloca quando o escapismo se converte em procrastinação, ou evitamento e adiar constante do regresso à vida “real”. E é por isso que, em doses moderadas, as férias são o tempo e o lugar privilegiados para escapismos vários que tantos tão bem conhecem, desde os leitores compulsivos aos jogadores inveterados, passando pelos instagrammers sem emenda e os que estão sempre de partida, para apanhar a próxima onda, comboio ou avião. Há quem se faça ao caminho à moda antiga, munido de mapa, bússola, mochila, tenda, cantil e fé no caminho, uma incógnita sem hora nem destino programados. A essência da vida, afinal, essa aventura perigosa. E gostosa.
Errar é preci(o)so.
Sonhar acordado e ser outro noutros mundos (virtuais incluidos). Fazer longas caminhadas em trilhos por descobrir. Há já quem fantasie com o dia em que fará uma viagem ao Espaço. Tudo vale, desde que se saia de nós. Dos hábitos mentais que conduzem às nostalgias de ontem e apreensões do amanhã, que geram ansiedade e desassossego. Evadir-se é deambular no presente, tantas vezes vivido com tédio. Errar é humano e é precisamente na errância que reside a beleza da viagem. “O movimento é a melhor cura para a melancolia”, costumava lembrar o escritor Bruce Chatwin. Viajar faz a mente, porque “a exploração do ambiente é a base da inteligência”. O globetrotter que ficou famoso pela literatura de viagens argumentava que as drogas eram o veículo daqueles que se esqueceram de como se caminha. E que os futebolistas eram, de certo modo, peregrinos, porque a bola que chutavam simboliza uma ave migratória.
Não é Saudade, é Fernweh.
Aos olhos dos outros, o viajante (não o turista) está sempre em “modo de férias”. O viajante não se satisfaz com a contemplação, no aeroporto, dos aviões que chegam e que partem. Nem se encanta com as acrobacias aéreas e distrações que pode ter, sentado na poltrona da sala ou na cama, com um ecrã tátil no colo. A alma de viajante não padece de saudade: o lugar que ele deseja não pertence ao passado nem ao que é familiar. A alma de viajante tem horror ao domicílio, sente privação daquilo que ainda não conhece e aquela ânsia por lugares longínquos, que na língua alemã tem o nome de Fernweh. Todos conhecemos e já fomos tocados pelo charme irresistível do escapismo, essa arte de partir com destino incerto que encerra a certeza de se entrar numa dimensão onírica em que tudo é novo, diferente e possivel. E onde se pode conhecer o estranho que há em nós.
Experimentar sem medo
O escapismo saudável não se confunde com um mecanismo de defesa em que se nega a realidade e se procura refúgio no imenso mar dos devaneios cujo único propósito é aliviar o mal-estar presente, a falta de ar pela sensaçao de confinamento ao aqui e agora. Na sociedade vanguardista em que todos insistem em correr, como programas num browser, hiper ocupados com atualizações contínuas e em alerta máximo para nunca ficar de fora, a nova tirania é estar sempre fora de si. É ser incapaz de aceitar pacificamente as escolhas que se vão fazendo, com alguma margem de erro, e de tolerar as alternativas que se deixam, inevitavelmente, para trás. O escapismo saudável não pode assenter nem no apego nem na desresponsabilização pelas escolhas feitas. O escapismo com arte é uma atitude que nos liberta, temporariamente, de rotinas e hábitos, ao menos uma vez no ano. Idealmente, o escapismo não é coisa que se guarde só para as férias, como se fosse um luxo, uma fuga, uma vida por viver. É preferivel que o encaremos como uma necessidade de abertura ao imprevisto e a tudo o que espevita a imaginação e exercita a criatividade. E que reservemos diariamente um tempo e um lugar para tal. Pode ser, até, à hora do café.