“É para o lado que eu durmo melhor”. Embora já tenha dado por mim a empregar esta expressão, a verdade é que só há alguns dias me dediquei a pensar sobre o tema. Faz sentido indagar se existe uma orientação espacial que favoreça o sono e, eventualmente, influencie o nosso estado de humor após o despertar?
Parece que sim. Bastou googlar um pouco até tropeçar nos resultados de investigações, científicas e não só, que não deixam de surpreender.
Surpresa nº 1 – “Virar à esquerda é fixe”
Dois inquéritos patrocinados por marcas de colchões e unidades hoteleiras do Reino Unido, e que envolveram entre mil e três mil pessoas, permitiram concluir que quem dorme no lado direito da cama tende a acordar mal humorado, a gostar menos do seu emprego e a ser mais solitário. Já os que se instalam no lado esquerdo do colchão parecem mostrar-se mais positivos e bem dispostos do que os ‘direitistas’. Não admira, pois, que se mostrem relutantes, em mais de metade dos casos, a trocar de lado com os parceiros de cama.
Levar estes resultados a sério remete para outra questão, não menos intrigante: O ‘lado errado’ da cama existe? ‘Mudar de lado’ no local onde acontece aquela fase do sono REM pode ter impacto no estilo de vida ou na forma como a percecionamos e conduzimos?
Inicialmente ainda pensei em sondar um especialista em Feng Shui, mas acabei por ir à procura de informações médicas ligadas ao tema, que se presta a conversas ligeiras num final de tarde. Descobri, sem surpresa, que para os profissionais de saúde importa mais o lado do corpo – o objeto de estudo e de medidas preventivas e promotoras de bem-estar – do que o lado da cama (mais relevante para os que vendem colchões e reservas de quarto).
Surpresa nº 2 – “Apoiar-se na esquerda faz bem à saúde”
Os resultados de um estudo publicado no The Journal of Clinical Gastroenteroly sugerem que deitar-se sobre o lado esquerdo facilita a drenagem linfática e é mais user friendly para órgãos como o pâncreas e o estômago. “Azia? Não obrigada”. E já agora, o coração também agradece que cultivemos essa posição. Para muitos, tal constitui um verdadeiro gesto revolucionário.
Quer isto dizer que há um lado “errado” da cama? Não se trata de superstição, mas agora que esta informação se tornou viral no meu sistema consciente, deverei deslocar o meu corpo para o lado “certo” (aquele que não é “às direitas”)? E para complexificar, coloquemos esta questão numa dinâmica relacional: Como mudar para o lado “certo” sem fazer estragos (ou manter-se no lado “errado” para evitá-los)?
Hipótese nº 1 – O lado ‘certo’ da cama (e do corpo) pode ser o ‘errado’ para o amor (e vice-versa)
Se o lado esquerdo do território do sono promove a “sociável e saudável alegria”, como fazer ajustes a dois, sem ficar perdido(a) num quebra-cabeças? Ou seja, como mudar de lado sem que:
1 – o(a) parceiro(a) proteste ou, pior, interdite essa hipótese?
2 – se altere a posição “certa” do corpo (sobre a esquerda, como recomendam os médicos)?
3 – sem ficar do lado “errado” face à pessoa com quem se dorme (ficar de costas para ela)?
Há várias combinações possíveis. Nós, humanos, não funcionamos propriamente como algoritmos. Seja qual for o critério da escolha, podendo até ser fruto do acaso, é certo que nós, humanos, somos animais de hábitos, tão capazes de adaptarmo-nos como de rebelarmo-nos e mudar de ideias (posições, posicionamentos) a qualquer momento.
Dizem que dois é bom e que três é demais. Talvez dois seja, por vezes, uma multidão ensurdecedora, na hora de ir para a cama, esse lugar pacifico para sossegar mente e corpo e repor energias. Basta pensar na clássica discussão, entre amigos, amantes ou conjuges, mas que também pode passar-se entre irmãos e primos durante aquele fim-de-semana ou mini-férias em que decidiram quebrar rotinas e fazer-se à estrada. Pernoitar num sítio simpático é uma coisa, entender-se no território novo é outra, que também pode revelar muito de cada um dos hóspedes do espaço a desfrutar. “Eu não durmo no lado da porta”, diz um. “Mas tu só dormes sempre do lado esquerdo e eu fico sempre do outro lado”, diz outro. “Temos pena.” E chumba-se o teste de fuga á rotina, que ia saber tão bem… E ainda há a modalidade “Fica nesse lado que tens o armário, que eu sem a janela ao pé não durmo”. “Pronto, fica nesse e não se fala mais disso. Ok, se assim é, podes abir a janela mas fecha a persiana se não quem não dorme sou eu”.
Hipótese nº 2 – “À minha direita ou à tua?”
Qual dos dois protagonistas está certo? As preferências (ou caprichos?) de cada um podem ser compreendidas à luz das teorias da lateralidade (hemisférios cerebrais)? É possivel que uma pessoa dextra veja satisfeita a sua vontade se a deixarem dormir voltada para o lado direito (governado pelo hemisfério esquerdo, racional e dominante). Ou que durma sobre o lado esquerdo do corpo, associado ao hemisfério não dominante (direito), onde residem as capacidades criativas e o potencial (mais do que a vontade ou a convenção).
Mudemos de lado. De perspetiva. Da ciência para a doutrina (cristã). No Credo dos Apóstolos, a mão esquerda representa o norte, a mão direita é o sul e Jesus está sentado à direita do (Deus) Pai. No registo esotérico, o caminho da mão esquerda – do individualismo (“faça-se a minha vontade”, ou a minha revolução) é distinto do caminho que se lhe opõe, o da mão direita (“faça-se a vossa vontade”, a da autoridade, poder e honra).
Numa dinâmica a dois, em que ficamos?
Se for minha vontade (ou intenção) ter alguém ao meu lado direito, posso dizer que essa pessoa é aquela em quem mais confio, o meu braço forte? Isso tem alguma influência na qualidade do meu sono ou da minha disposição? Havendo duas cabeças com acesso a estes dados, devem os companheiros de quarto alternar posições para que a vivência desta polaridade seja feita de modo democrático?
Mantenha a calma!
Ao que parece, a vida não é fácil, nem mesmo quando se está a dormir. Da próxima vez que tiver dificuldades em adormecer, lembre-se de que pode fazer este exercício mental e acabar, provavelmente, a mergulhar num estado quase agradável de confusão (anarquia) mental, como aqueles que precedem o melhor dos sonos.
Se quiser ir a treinos e melhorar a relação com o seu lado esquerdo – associado à parte de si que é mais inconsciente, o lado sombra, aquele lado para onde se deve dormir, do corpo e da cama – já sabe que vai ter de se entender com o lado direito, ou seja, o seu e o que corresponde ao espaço da cama reservado à pessoa que tem por perto.
Se acha que é uma pessoa “às direitas” (ou uma personalidade “alfa”, imbuída de carisma e vontade) mas dorme para o lado que o coração e o estômago pedem, e ainda vai querer ocupar o lugar que fica à esquerda para ter melhor humor e ganhar popularidade… mantenha a calma e entregue-se às surpresas da bipolaridade sem regulação do mercado … do território conjugal (ou comunitário, entre amigos).
Com isto, os neurónios ficaram baralhados. Eu, que até aqui trocava o lado em que dormia sempre que mudava o colchão, entre estações (verão / inverno), depois desta digressão já não consigo ver este ritual com a mesma ingenuidade ou ligeireza. E talvez por isso possa agora, com propriedade, compreender melhor a expressão que sempre achei irritante, embora sem perceber exatamente porquê. Quando voltar a deparar-me com estudos deste tipo, essa expressão vai surgir, espontânea, no palco da minha mente e, talvez, do meu discurso: “É para o lado que eu durmo melhor!” E qual deles é, pode saber-se? “Não”. Há perguntas que devem ficar sem resposta. Até mesmo para nós próprios e para nosso bem. Seja o que for que cada um considere ser o seu “bem”.