Foi na véspera de Natal que tive conhecimento que uma nova versão de Pinóquio estava disponível no Netflix. Em conversa com o meu sobrinho mais novo, o Pedro, de 13 anos, disse-me que era um “bom filme para entender porque é que a morte é importante para a vida”. Fiquei intrigado até porque não costumo ser espectador atento de filmes de animação, mas pela descrição interessante que recebi, entendi que devia ver.
No dia de Natal, vi o filme de animação em stop-motion do realizador mexicano Guillermo del Toro e fiquei muito agradado com esta obra de arte. Em preparação ao longo de 15 anos, o filme não se parece com nenhum outro filme de animação que já tenhamos visto antes e apresenta-se como uma bela adaptação emocional e sentimental das Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi (1883), desta vez na Itália do fascismo. Este Pinóquio é arrebatador, com uma estética muito diferente do tradicional Pinóquio que todos conhecemos da Disney (1940).
Guiados ao longo do filme por Sebastian J. Cricket, a conhecida consciência que, em português, designamos por Grilo Falante, e que no filme nos chega através da voz de Ewan McGregor, vemos a dor e a experiência de homem vivido do pai Mestre Geppetto, (voz de David Bradley) que, no luto pela perda do seu filho verdadeiro, esculpe o Pinóquio, voz de Gregory Mann. Este Pinóquio é a primeira marioneta totalmente criada numa impressora 3D. Não sendo um musical, conta também com vários momentos musicais através da banda sonora de Alexandre Desplat. Nomes consagrados como Tilda Swinton, Ron Perlman, Cate Blanchett e Christoph Waltz dão também voz às diferentes personagens.
O filme – sombrio, bastante visual e realista – pode resumir-se como “uma história de amor e desobediência, enquanto Pinóquio luta por corresponder às expectativas do seu pai, aprendendo o verdadeiro significado da vida”. Faz-nos pensar no luto e no papel da morte nas nossas vidas (a tal referência inicial que me levou ao filme), ao mesmo tempo que nos convoca a refletir sobre as relações imperfeitas e inconstantes que se geram nas nossas vidas e, em particular, nas nossas famílias.
A par do sofrimento que atravessa todo o filme, está também presente a cruel e inevitável experiência da condição humana, que vai moldando a natureza das relações que estabelecemos com as pessoas à nossa volta a partir de outras relações e experiências passadas com pessoas que, por morte ou por outro motivo, já não podemos ter na nossa vida. É a ferida da ausência que renasce noutras dinâmicas, experiências e pessoas. Em Geppetto essa tentativa é clara, ao procurar substituir o falecido filho Carlo e a dinâmica pai-filho na irrequieta e imprevisível marioneta Pinóquio.
O filme que teve mais de mil dias de gravações, usa o método de animação stop-motion, em que os bonecos são minuciosamente manipulados quadro a quadro para criar uma ilusão de movimento. Pinóquio, a marioneta solitária, que vive nesta aventura de Del Toro e do animador Mark Gustafson, lida com a morte como algo que consegue sempre ultrapassar até ao derradeiro momento em que o amor ao Mestre Geppetto o faz abdicar da vida eterna.
Além da espetacularidade da película, que procurei descrever sem demasiado “spoil” para quem ainda não teve a oportunidade de ver, assistir a este filme em que o luto e ausência são protagonistas na altura do ano, o Natal, em que o luto e a ausência mais se fazem sentir em tantas famílias, foi igualmente marcante e por isso, estou grato a Guillermo del Toro.
Vivo desde que me lembro com a presença do luto e da ausência na minha vida, recordo-me da última conversa que tive com o meu avô paterno, na qual me disse que desde o dia em que o meu pai morreu que a vida dele deixou de fazer sentido. Foi impossível, mesmo num filme de animação, não me recordar dessa conversa, do meu pai e do meu avô enquanto via o sofrimento de Geppetto no ecrã. É no Natal que todos sentimos mais a falta do meu pai. É um período especialmente doloroso. Por mais que os anos passem, nunca é uma altura fácil na minha família.
Não se ultrapassa a ausência daqueles que amamos, recordamo-los com carinho, prolongamos o amor enquanto estiverem cá todos os que o conheceram através das memórias e estórias contadas, sempre com a esperança de um dia nos reencontrarmos todos.
Tal como o Pinóquio vai entendendo a lógica da vida dos humanos e cresce com o desaparecimento e morte de Geppetto e dos parceiros que alicerçaram e deram cor ao seu mundo até ficar só e partir para novas aventuras, acredito que temos sempre de seguir em frente, ano após ano, Natal após Natal. O luto é uma experiência muito pessoal, íntima e única, e no meu caso, vivo o luto enquanto forma de me lembrar a cada dia que a maior dádiva é estar neste mundo, que devo tirar o máximo proveito desta existência… é a tal importância da morte para a vida, como tão bem descreveu o meu sobrinho Pedro.
Recomendo a todos que vejam este Pinóquio de Guillermo del Toro. E como diz o grilo Sebastian J. Cricket num dos reencontros entre Geppetto e Pinóquio, devemos saber sempre que “o amor magoa”.
Votos de um Feliz e bem vivido 2023!
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