Kiev – 16 horas – (14h em Lisboa) – 23 Agosto 2023: O Presidente da República está na cimeira da «Plataforma da Crimeia», e nós (Pacheco Pereira e eu) partimos, a pé, para a Praça da Independência, em busca de material para o «Arquivo Ephemera», e para ver os despojos de guerra do Império russo, que jaziam na grande avenida que desemboca na praça.
Nas primeiras horas, durante toda a manhã e meio da tarde, há uma surpresa que não antecipava: Kiev não parece uma capital em guerra. Não está pesadamente militarizada, vigiada e guardada. É uma cidade europeia, muito movimentada, com uma população muito jovem, e a viver um dia de semana normalíssimo. Parece estranho, mas é a realidade. Os ucranianos aceitaram mentalmente o estado de guerra, fazem a sua vida tão normalmente quanto possível, e acreditam inquestionavelmente numa vitória militar.
Na Praça da Independência, que obviamente tinha outro nome, vê-se uma longa fila de destroços de guerra russos, onde se destacam os famosos «T-90 A» calcinados – os tais que eram imbatíveis – seguindo-se as grandes peças de artilharia autopropulsionada de 155mm, o orgulho de Moscovo, os blindados de transportes de tropas, feitos em cacos, e mais material esburacado que envergonha qualquer superpotência militar. É o lixo de uma festa que começou mal, e que acabará pior.
Há, também, nas laterais da Praça, a lembrança e memória dos militares caídos em combate: são as pequenas bandeiras ucranianas, com o nome e a data, que preenchem os espaços ajardinados. É um mar amarelo e azul, e em algumas zonas destacam-se as cores do Batalhão Azov, da Legião Estrangeira, e dos voluntários georgianos. É um ritual ucraniano. Que obriga a parar. E a saudar. Será o último percurso do Presidente da República, fora da agenda, no dia seguinte, antes de partir de comboio, outra vez, para Varsóvia. Nós dissemos ao PR que tinha de ir, e ele aceitou. E acreditou. E gostou.
De volta ao hotel, por volta das 16 horas, ouvem-se pela primeira vez as sirenes de alerta. É um som distante, mas o sistema do hotel encarrega-se de avisar todos os presentes: «há um alerta de ataque aéreo, e todos as pessoas devem dirigir-se para o «bunker» no piso -2», assinalado com grandes letras e cartazes. Do Mar Negro foram lançados dois mísseis, em direção a Kiev, mas intercetados a meio caminho. Era o primeiro sinal da guerra.
O outro veio no dia seguinte, um pouco mais cedo, mas não passava de um alerta precipitado. Dois Migs tinham levantado voo na Bielorrússia, na rota de Kiev, mas rapidamente mudaram o plano de voo. Tudo tranquilo. Tudo a desmobilizar. Nada escapa ao sistema de «alerta avançado» instalado na Ucrânia, mesmo a centenas de quilómetros de distância. Há uma curiosa mentalidade e comportamento no «bunker», dizem-me, mas não vi nem assisti. O que se nota é o rápido esvaziar das ruas, a quase paragem do trânsito, mas tudo de forma serena e planeada.
Um ano e meio depois da invasão russa, Kiev sente-se protegida com os «Patriot» e os «Iris-T». Tem a Cúpula que sempre desejou. Esse estado de espírito transmite-se aos visitantes. Há janelas protegidas com sacos de areia, «bunkers» assinalados nas ruas, mas as esplanadas estão cheias, e vive-se sem sobressaltos. Um dia à vez. No meio desta guerra sangrenta e injustificada, os ucranianos continuam a ser excecionalmente simpáticos, muito bem-dispostos e sempre disponíveis.
Domingo: Zelensky ao almoço (VI)
Notas de Rodapé: 1. A app «AirAlert» deverá estar instalada em todos os telemóveis dos ucranianos. Também na comitiva. Poucos segundos antes das sirenes «gritarem», já o alerta circula entre todos. Funciona tão bem, que em Varsóvia, no regresso, quase noite, voltou a ser ativada com um novo alerta. Esta é a guerra dos drones e das apps.
2. O Hotel do Presidente, e da comitiva, está fortemente guardado. No perímetro estão soldados, forças especiais, polícias e os membros dos Destacamentos de Segurança nacionais, tanto do presidente como do MNE. São muitos, e sempre atentos.
3. Um salário médio na Ucrânia é de 12 mil «hryvnias», revela-nos a intérprete ucraniana. Convertido em euros, são pouco mais de 300! Por mês, bem entendido. Não bastava a guerra. A União Europeia tem de dar os primeiros passos, fortes, na coesão. É impensável.
PARA SABER MAIS:
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