Inês é morta… E, como tal, de pouco serve chorar sobre o leite derramado.
Declaração de interesses para que não haja dúvidas: sou e serei de esquerda. Acredito na democracia, na igualdade de oportunidades, independentemente da religião, nacionalidade, etnia ou orientação sexual.
Dito isto estou, naturalmente, desgostosa com o resultado das últimas eleições, por todas as razões já apontadas e ainda esta: temo que as políticas migratórias no nosso País regridam e aumente a violência contra os estrangeiros e a xenofobia.
Mas, ao contrário do que vejo e ouço, não me parece que declarar e vociferar contra o tal partido que NUNCA (escrevi-o logo na altura) devia ter sido aceite, porquanto na minha opinião vai contra o artigo da Constituição que afirma não serem permitidos partidos fascistas, mais não faz que lhe dar força e poder e empurrar o pouco que resta da direita democrática para os braços do extremismo.
Por muito que me ou nos custe, não podemos ignorar a vontade de um milhão de pessoas. Tão pouco creio que sejam todas fascistas ou protofascistas, como alguém apelidou o dito partido, ou mesmo ignorantes, para não usar o epíteto pior que vem sendo usado o nas redes sociais. Não! Aquele milhão de votos é um grito de indignação, de protesto contra as políticas que têm vindo a ser seguidas pelos dois grandes partidos do espectro político vigente e que se baseiam num clientelismo exacerbado ao ponto de assistirmos, não a casinhos, mas a verdadeiras mansões de corrupção e inépcia.
Não quero com isto dizer que muito do que, nos últimos tempos, sucedeu com buscas, processos que dão em nada, arguidos que saem em liberdade, possa ser fruto duma instrumentalização da justiça e que esta não esteja também imersa num atoleiro assustador e ao serviço de alguma força cinzenta a agir nos bastidores. Mas não é minimizando os acontecimentos que se consegue apaziguar a opinião pública que é, nem mais nem menos, a opinião partilhada pelos eleitores.
Por muito que me ou nos custe, não podemos ignorar a vontade de um milhão de pessoas. Tão pouco creio que sejam todas fascistas ou protofascistas, como alguém apelidou o dito partido, ou mesmo ignorantes para não usar o epíteto pior que vem sendo usado o nas redes sociais. Não!
Nesta reflexão não faço, porque não seria honesta, distinção entre os dois grandes partidos portugueses. Um e outro agem, em rotação, da mesma forma. No entanto, como mulher de esquerda, entristece-me muito mais a situação que se vive no espectro político em que me movo.
A reflexão sobre a forma de fazer política, os interlocutores e os objetivos, era uma necessidade para que muitos vinham alertando. A máquina partidária, criada para proteger ideologias, valores e pontes de contacto com os eleitores, transformou-se num monstro de clientelismo que se auto alimenta e não permite grandes alterações ao status quo. Daí que essa mudança, que passava em muito por promover a meritocracia, por falar e proteger as minorias sem descurar as maiorias que se sentiram órfãs de voz, por se reger por princípios coletivos e não pactuar com agendas individuais, não foi feita. Ao invés, assumiu-se uma arrogante posição que, com o intuito de levar a extrema-direita ao seu lugar de populismo e demagogia, mais não fez que dar-lhe um palco e dotá-la daquilo que não tinha: autoridade para falar em nome do povo.
Acontece que o povo falou.
Foi, acredito!, uma voz de repúdio, mas ignorá-la é aumentar-lhe o volume.
Tentar agora ganhar por lógica dialética, que entendo e até subscreveria, é neste momento contraproducente.
A posição da esquerda, de toda a esquerda, da minha esquerda, arrisca-se a empurrar o governo para o colo de quem nunca devia ter sido sequer uma força política.
Ainda nem passou uma semana após as eleições já vozes se levantam a pedir novo ato eleitoral.
Profunda asneira porquanto neste clima o risco da extrema-direita chegar ao poder seria muito maior.
Esta é uma boa altura para olharmos sem preconceitos para o que fizemos em termos de política e de políticos. Analisar se o que colocámos como objetivo central da nossa luta foi o País ou o(s) partido (s) e a(s) sua(s) estrutura(s). É a hora para assumirmos os nossos erros, reestruturamo-nos e reconquistarmos a confiança que perdemos junto do povo. Para voltarmos ao diálogo com a humildade de quem faz um mea culpa sincera e altera o seu rumo perante um mundo e um país em mudança.
De que vale falarmos da diferença mínima de deputados dum ou de outro grande partido? Como se pode ignorar a existência de 48 deputados votados e com direito a assento no hemiciclo?
Apoucá-los, ignorá-los ou deles escarnecer, só lhes dará mais força.
O que precisamos é entender o que aquele milhão de descontentes pretende. O que é urgente é comunicar com linguagem simples e sem arrogância do que foi (bem) feito e o que ficou por fazer, o que é verdade e o que não passa de narrativas falsas com fins muito diferentes dos que lhes são mostrados.
Continuar a ignorar a insatisfação e o protesto popular é caminhar para o abismo da ditadura sufragada.
A coragem da luta começa aqui e agora. Por aqueles que acreditam num Estado mais solidário, mais humanista e mais livre. A luta da esquerda não deve ser apenas e, em primeiro lugar, contra quem votou na extrema-direita. Deve começar por ser interna, contra as práticas que nos levaram a afastar do que mais importa: o povo. Para que seja este, hoje e sempre, quem mais ordena!
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