É espantosa a forma como normalizamos e nos adaptamos a situações completamente anormais, mesmo que profundamente chocantes.
Lula da Silva chamou à atenção para este facto na última reunião entre a UE e a CELAC, dizendo, naquele seu estilo tão próprio, que as pessoas estavam cansadas da guerra na Ucrânia.
Conhecendo a sua posição relativa ao conflito, creio não andar muito longe da verdade quando leio das suas declarações o reconhecimento deste cansaço sobretudo na opinião pública.
Este fenómeno de exaustão mediática e consequente indiferença perante os acontecimentos já o vimos noutras situações.
Não houve ninguém que não visse e se chocasse com a imagem do menino morto à beira mar, depois dum dos vários naufrágios no Mediterrâneo.
Dele já poucos lembram o nome e, da imagem, ficou apenas o vermelho da t-shirt que usava. Para trás ficou a empatia com o pai da criança, o horror do “peixinho inocente” dado à costa, a indignação sobre o que se passa no mar da morte.
O naufrágio de imigrantes ao largo da Europa tornou-se um fenómeno banal. Já não abre noticiários nem faz primeiras páginas dos jornais, nem tão pouco consta dos “feed de notícias” das redes sociais. O que cada dia continua a ser um drama já não nos envergonha coletivamente nem nos indigna. Submergiu na voracidade da informação, do tempo e das agendas mediáticas.
Esta manipulação da focalização e do interesse demonstra bem que pensamos de acordo com o que nos é dado a pensar. Tornámo-nos autómatos teleguiados pelas máquinas da informação e da desinformação. Pensar é cada vez mais um outsourcing ao sabor dos grandes interesses políticos e económicos.
Mesmo a guerra aqui à porta, cujas ondas de impacto indirecto temos vindo a sofrer sobretudo nos bolsos, não altera este foco desviado para assuntos mais comezinhos.
Como é possível que, num mundo onde 9 milhões de pessoas, das quais mais de 1 milhão são crianças, morrem de fome a cada ano que passa, não exista uma consciência coletiva, uma pressão diplomática internacional para travar este crime de guerra?
E, no entanto, nunca como agora o conflito entre a Rússia e a Ucrânia esteve tão perto de escalar para fora dos limites geográficos. Em boa verdade já o fez.
Claro que não se trata duma extensão da guerra aos países fronteiriços da Ucrânia, agora praticamente todos parceiros da NATO. Embora essa hipótese continue a pairar sobre o cenário belicista, por não ser um perigo imediato e sobretudo por ser tão sinistramente temido, tendemos a ignorá-lo.
Esquecemos, porém, que a guerra já não se faz apenas com armas mais ou menos convencionais.
O boqueio ao escoamento de cereais, ou mesmo o bombardeamento de locais de armazenamento, constituem uma temível, desumana e violenta arma de longo alcance.
Como é possível que, num mundo onde 9 milhões de pessoas, das quais mais de 1 milhão são crianças, morrem de fome a cada ano que passa, não exista uma consciência coletiva, uma pressão diplomática internacional para travar este crime de guerra? Porque se trata dum crime de guerra, não tenhamos dúvidas. Um crime que extravasa fronteiras e que deixa ainda mais desprotegidos os países, cujas economias são já por si débeis, no limite do humanamente suportável. Países como o Sudão, a Etiópia, a Somália, fustigados com alterações climáticas provocadas em grande parte pelos países Ocidentais e denominados desenvolvidos, veem a fome aumentar com a falta de cereais vindos do exterior.
Mais do que um crime de guerra, é um crime contra a humanidade! Enquanto uns queimam, destroem e deixam apodrecer outros sucumbem à fome.
Esta guerra tem uma componente de terrorismo não convencional, porquanto atua nos países africanos que – muito importante não esquecer! – detêm grande parte das matérias naturais mais preciosas e apeteciveis de todo o planeta, com o recurso a meios ínfimos produzindo impactos máximos.
O resultado do conflito não se mede apenas em baixas e em conquistas de territórios. Mede-se também na mobilidade forçada de populações africanas em direção à Europa!
A grande vaga migratória que se aproxima terá como origem aquele continente.
E quais serão os países de trânsito ou de entrada? Pois a Espanha e Portugal devido à sua proximidade geográfica.
Isto não significa que aquela população se venha a fixar aqui, mas certamente aqui aportará e daqui tentará chegar a outros destinos Europeus mais apelativos.
Quem os pode censurar por tentarem sobreviver num mundo que os relega uma e outra vez para o esquecimento e para as franjas da sobrevivência?
Os próximos anos serão anos de mudança violenta e generalizada.
Pena que estejamos tão focados em questões económicas e esqueçamos que a economia só existe porque existem pessoas.
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