Na fila para a entrada no concerto de Nick Cave & the Bad Seeds no Zenith, em Paris, há cerca de dois meses, o grupo mais entusiasta, com cartazes coloridos, panfletos e exclamações não era de fãs do músico australiano. Era um grupo que protestava por Nick Cave ter, nessa digressão, um concerto marcado em Tel Aviv, Israel. Nos últimos anos, o apelo ao boicote de espectáculos em Israel tem sido cada vez mais audível e mediático, ampliado, por exemplo, pela voz de Roger Waters, empenhado militante do BDS [Boicote, Desinvestimento e Sanções].
Nick Cave insistiu em terminar a digressão em Tel Aviv, explicou porquê, e a polémica subiu de tom. Sublinhou que quem quiser, por estes dias, marcar um concerto em Israel tem de passar pela “humilhação pública instigada por Roger Waters e companhia” e falou da obrigação que sente em “tomar uma posição contra essas pessoas que tentam calar músicos, fazer bullying a músicos, censurar músicos e silenciar músicos”. Waters, claro, indignou-se e respondeu com aquele tom paternal usado para um filho ingénuo que ainda não percebe nada da vida: “Nick, com todo o respeito, a tua música é irrelevante para esta questão. Assim como a minha, assim como a de Brian Eno, assim como a de Beethoven. Isto não é sobre música, é sobre direitos humanos”. Os apoiantes pró-palestinianos do Boicote, Desinvestimento e Sanções argumentam que qualquer espectáculo em Israel alimenta a narrativa do governo local sobre a democracia e normalidade do Estado de Israel e que os artistas estão, assim, a dar uma espécie de apoio tácito às políticas actuais de Israel.
Há dois anos, Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram pela mesma espécie de pressões e “humilhação pública”, aceitaram debater com Waters e acabaram por tocar mesmo em Israel. Tive oportunidade de falar com eles em Amesterdão e abordar o assunto. “Eu também toquei nos EUA na altura da presidência de Bush sem concordar nada com ela… E, mais do que isso, eu voltei para o Brasil para cantar durante a ditadura militar, no período Médici, que foi o pior, em termos de repressão e tortura. Não estou nada seguro que o boicote e isolamento de Israel seja produtivo para que haja ali paz, justiça e dignificação da vida humana”, disse, então, à VISÃO, Caetano Veloso. “Para recusar um convite eu tinha que estar nitidamente contra o país como um todo”, acrescentou. “O que não é o caso”, concordou Gil.
Pois eu acho que, com todo o respeito, Roger, isto é mesmo sobre música. E sobre a música com o seu poder transformador, a sua força. Israel não é um país de pensamento único. Tem havido inomináveis abusos, a política de colonatos parece indefensável, as fações mais militaristas e radicais chegaram ao poder e abusam com impunidade de acções repressivas. Mas há muito mais Israel para lá disso… Uma anedota judaica diz que “onde houver dois judeus tem que haver três sinagogas”. Estive lá, em 2002, e percebi facilmente que há quem combata ali pela solução de dois Estados, há israelitas com posições moderadas, pró-diálogo, quem apoie incondicionalmente os direitos do povo palestiniano e lute por isso. A frase que mais recordo dessa viagem foi-nos dita pelo escritor A.B. Yehoshua: “Israel não é um Estado moderno. É um Estado assente em mitos e lendas”. Mais de dois séculos depois da Revolução Francesa pode ser difícil a um visitante perceber aquele Estado democrático, moderno e desenvolvido mas não laico, assente na história mitificada de um povo e na reconstrução de um templo destruído há dois milénios… Um país onde a cada passo se sente a distinção nós/vós, nós/eles. Um país onde, também com tom paternal, me foi recusada, na cantina duma universidade, a ousadia de querer pôr queijo ralado na minha massa à bolonhosa por razões… kosher e uma explicação: ”Ah não se pode misturar produtos láteos e carne… Ah o cordeiro de deus.. blá blá blá…”.
Ora, neste país, rico de História, histórias e discussões, acho que só pode ser útil haver a participação de artistas de todo o mundo, concertos, peças de teatro, exposições… A última digressão de Nick Cave, posso dizê-lo, é um hino poderoso à convivência e ao amor. Se colocarmos em dois pratos de balança o boicote porque “se alimenta a narrativa de um governo opressor” e a liberdade de cantar e dizer o que se quer para um público livre que não concorda necessariamente com o governo do seu país, a escolha parece-me óbvia. Acho que Nick Cave, como Caetano Veloso, têm toda a razão.
Gostaria de voltar a Israel, sim, e explicar que tenho direito ao meu queijo ralado na massa à bolonhesa.