O que estou a fazer? A ouvir uma cassete. E não fui buscá-la a uma caixa de sapatos perdida no fundo de um armário. Esta semana chegaram à redação duas cassetes novinhas, embrulhadas em plástico e tudo. Como ainda tenho na sala uma “aparelhagem” com dois leitores de cassetes (sim, eu sei como tudo isso soa a velhadas, mas também tenho Spotify e acabei de usar o Shazam, ok?) carreguei no “eject” e, deliciando-me com o som mecânico de peças em movimento, pus no “deck 1” uma cassete dos Arcade Fire, The Reflektor Tapes. Dispenso-vos da conversa típica e nostálgica daqueles que foram adolescentes nos anos 80 e gravaram álbuns inteiros em cassetes da BASF, da TDK ou da Maxell, fizeram compilações em cassetes para oferecer às namoradas (mesmo que estas não existissem), gravaram os programas do António Sérgio (irritados por, mais uma vez, não perceberem bem o nome da nova banda apresentada por aquela voz tão tão grave…), escreviam “load aspas aspas” no teclado do ZX Spectrum e logo a seguir carregavam no “play” do leitor de cassetes (ou era ao contrário?), aqueles que se orgulhavam do seu walkman da Sony… Afinal não dispenso, acabei de o fazer.
Mas porque estou eu, em 2015, a ouvir uma cassete de uma banda formada no Canadá já em pleno século XXI? A resposta, muito mais exaustiva do que possam imaginar, está num livro editado em 2011: Retromania, Pop Culture’s Addiction to its Own Past, do jornalista musical britânico Simon Reynolds. Passámos décadas a imaginar o ano 2000 como sinónimo de futuro. Por extensão, todos os anos seguintes seriam a confirmação de um mundo cheio de novas soluções tecnológicas, de uma humanidade a olhar em frente, confiante nos tempos que tinha inventado. Aqui chegados, já bem entrados no século XXI, descobrimos que uma das nossas ocupações favoritas é… recuperar o passado. Não só olhar para ele, mas revivê-lo, revisitá-lo, trazê-lo para o presente, ou mesmo para o futuro. Daí as cassetes, o regresso do vinil, os grupos que se reúnem anos depois de há muito se terem separado para sempre, as bandas que levam aos palcos velhos álbuns tocados por ordem (ainda no ano passado os The Jesus & the Mary Chain trouxeram Psycho Candy, de 1985, ao Alive); daí as T-Shirts dos Ramones envergadas mesmo por quem nunca ouviu Ramones, daí as eternas coletâneas e antologias por alturas do Natal, daí a moda dos 70, dos 80, dos 90…, tudo ao mesmo tempo, daí os remakes das velhas comédias do cinema português a baterem recordes de bilheteira, daí as aplicações que fazem as nossas fotografias de telemóvel parecerem daguerreótipos (a tecnologia ao serviço da nostalgia), daí o novo Mini, o novo Volkswagen Carocha, o novo Citroën DS…
O futuro, afinal, está cheio de passado. Reynolds recua à origem da palavra «nostalgia» (um termo do século XVII, nascido no contexto militar, para descrever o sofrimento e a melancolia que atacava, e incapacitava, os soldados afastados dos seus lugares por muito tempo), esmiuça a cultura retro ao ponto de revelar o seu lado mais risível (como aquele especialista em distinguir cartazes e posters originais de cartazes e posters… posteriores, ainda que iguais), organiza revivalismos, esgota todos os recuos da cultura pop.
Instintivamente, acredito que nos viramos para o passado nos momentos em que mais tememos o futuro. Confere. O futuro, hoje, assusta. O passado funciona como lugar seguro e zona de conforto, mesmo se, para isso, tivermos que o reinventar e reescrever. Como perguntava o antropólogo francês Marc Augé num livro publicado também por alturas de Retromania, já em pleno século XXI, Où Est Passé l’Avenir?. Para onde foi o futuro?