No País dos brandos costumes, temos uma típica forma de lidar com os problemas. Primeiro, tentamos semicerrar os olhos, encolher os ombros e fingir que eles não existem. Muitas vezes, os problemas dissipam-se. Outras vezes, avolumam-se e transformam-se em problemas maiores. E, muitas vezes, só quando nos entram pelos olhos adentro, indisfarçáveis, é que percebemos que não dá mais para continuar a ignorá-los.
Com os vários movimentos inorgânicos negacionistas e antivacinas, foi mais ou menos isso que aconteceu. Desvalorizámos o problema, porque ele começou por ter pouca expressão. E olhando para os números da vacinação, representam uma ínfima minoria. Demos, e bem, primazia à liberdade de expressão destas pessoas, que estão no seu legítimo direito de acreditar em todas as realidades alternativas que entenderem, oscilando entre um anarquismo libertário e as ideias mais radicais de conspiração global para dominar o mundo com o beneplácito de chefes de Estado, cientistas e médicos ou as crenças de chips ou produtos tóxicos instalados nas vacinas.
Desvalorizando e rindo, foram chamados de “chalupas”. Algumas situações são, de facto, risíveis para todos os que acreditam em factos e na Ciência, de tão estapafúrdias as teses, outras são evidentes casos clínicos do foro psiquiátrico. Acontece que o caso começa a ganhar escala e os protestos a tomar contornos cada vez mais inoportunos e agressivos. Mais do que “chalupas”, agora são ameaças.
O que começou com ataques sistemáticos e organizados nas redes sociais, passou para o espaço público. Vimos comentadores na televisão e colunistas em alguns órgãos de comunicação social a propagarem informação falsa. Vimos manifestações a amedrontarem crianças que aguardavam nas filas de vacinação. Vimos o vice-almirante Gouveia e Melo ser recebido com insultos e apelidado de assassino. Vimos o ainda juiz, embora com funções suspensas, Rui Fonseca e Castro a ameaçar e agredir verbalmente agentes da PSP que lhe pediram para colocar a máscara. Vimos Fernando Nobre, médico e candidato à Presidência da República a discursar numa manifestação antivacinas e a dizer que se curou da Covid com azitromicina, hidroxicloroquina e ivermectina, fármacos comprovadamente ineficazes. Vimos Ferro Rodrigues, a segunda figura do Estado português, atacado verbalmente num almoço de família com ofensas e ameaças por estes grupos.
A técnica é sempre a mesma: contestar as medidas de luta contra a pandemia e o sistema e tudo o que, no seu entender, o representa e impor uma narrativa irracional pelo medo, pelo histerismo e pela divulgação de mentiras, informações falsas e teorias da conspiração alucinadas, sem qualquer base científica. Esta narrativa, claro está, interessa a outros movimentos e partidos que se dizem antissistema – muitos deles, aliás, fazem parte das suas fileiras. Tudo o que cause mossa no suposto “statu quo” beneficia-os indiretamente (veja-se como André Ventura não se quis vacinar cavalgando a onda e tentando captar estas simpatias).
Talvez agora a grave ocorrência com Ferro Rodrigues tenha feito soar os sinais de alarme. Não podemos continuar a lidar com estas situações com benevolência, como se os seus autores de inimputáveis se tratassem. Não estamos, note-se, apenas perante atentados contra a honra e o bom-nome particulares de cada um dos atingidos. Estamos perante crimes que atentam contra os interesses coletivos, a paz pública e a realização do Estado de direito. Há um manifesto incitamento à desobediência coletiva e até à participação em motim. E há sinais crescentes de que ganham escala. É, pois, preciso consequências, imediatas, rápidas e duras, tal como estipula a lei. Encolher os ombros não é mais solução.