O fenómeno está estudado: as memórias olfativas são poderosas, e conseguem o extraordinário efeito de nos transportar no tempo. O fenómeno de Proust (ou as memórias autobiográficas suscitadas pelo olfato, assim chamadas graças ao livro “Em Busca do tempo Perdido”, de Marcel Proust, em que o cheiro de um bolo mergulhado numa chávena de chá faz regressar ao passado) tem em mim um efeito mágico com o talco. O odor do pó branco faz-me recuar até à infância. Lembra-me a minha avó a vestir a sua combinação, que “uma senhora nunca sai à rua sem uma combinação”, repetia-me ela. Lembra-me os fins de dia de verão, quando a minha mãe me besuntava de talco para ajudar a tirar a areia e vestir confortavelmente a roupa antes de sair da praia. Lembra-me coisas boas, dias felizes, segurança.
Fast forward até aos dias de hoje. Depois de ler um longo artigo na penúltima edição da Bloomberg Businessweek, fico a conhecer um pouco mais sobre a norte-americana Jacqueline Fox. Jackie foi criada a pensar que uma senhora, depois de tomar banho, tinha de usar talco nas partes íntimas. “Fui educada assim. Ajudava a manter-nos frescas e limpas… nós as senhoras temos de ter cuidado.” Para ela, era tão normal como usar pasta de dentes ou desodorizante. Toda a vida, meteu uma dose de pó talco Johnson & Johnson nas cuecas antes de se vestir. Até que, aos 59 anos, foi diagnosticada com cancro dos ovários em estado avançado. E foi nessa altura que se deparou, quase por acaso, com um anúncio de uma sociedade de advogados que dava conta da ligação entre o uso prolongado do talco e este tipo de cancros. Decidiu processar a gigante multinacional, alegando que tinha sido enganada pela marca desde sempre. Afinal, se o talco era usado em bebés, não poderia ser mais seguro, sempre pensou.
Tudo indica que afinal estava enganada. Alegou que o talco se infiltrou até aos seus ovários, casando um processo inflamatório que deu origem ao cancro. Acabou por falecer em Outubro de 2015, e só quatro meses depois, o seu caso teve um desfecho em tribunal: a J&J foi condenada por negligência, conspiração e falha grave em não alertar as mulheres para os riscos do uso do pó nos genitais, apesar de ter conhecimento dos riscos potenciais há décadas. Já em 1971, investigadores britânicos estudaram 13 tumores do ovário e encontraram pó de talco em 10 deles. O veredito do tribunal de St. Louis não foi brando: a empresa foi obrigada a pagar uma indeminização de 10 milhões de dólares à família e mais 62 milhões de multa.
O processo terminou, mas é só o início do que se advinha vir a ser um longo calvário judicial. Diz a Bloomberg Businessweek, que a empresa tem mais de 1000 processos em curso (alguns sites, como Guardian, apontavam 1200 processos) por causa dos alegados riscos do talco, cuja fórmula inicial continha amianto (há vários anos que as fórmulas no mercado não incluem este ingrediente perigoso). Mas a ciência, como muitas vezes acontece, não é clara, e há estudos que apontam em ambos os sentidos. Alguns, apontados pela empresa, que dizem que o talco é inócuo, e outros, em que se baseiam os queixosos, descobriram um aumento de 30% de casos de cancro dos ovários em utilizadores de talco.
A forma como um hábito inofensivo pode afinal esconder um perigo para a saúde faz-me lembrar o tema de capa da VISÃO desta semana, sobre os riscos potenciais do wi-fi nas nossas vidas. Neste trabalho, Vânia Maia falou com o maior especialista mundial no assunto, ouviu engenheiros, médicos, pacientes e até gente que mudou de vida para fugir aos riscos das ondas eletromagnéticas. Conta histórias de quem conseguiu uma pensão de invalidez graças aos efeitos devastadores que a tecnologia tem na sua saúde. Tal como acontecia com o talco, as ondas estão em toda a parte e há quem garanta que são inofensivas. Mas, no longo prazo, podem na verdade não ser tão inócuas como se pensa.