Parece que foi ontem, mas já lá vão 22 anos, feitos precisamente esta semana. Ali estava eu, nervosa e a acusar a data solene, com a cabeça enfiada no exame de Ciência Política e Direito Constitucional. Era o primeiro teste que fazia na Faculdade de Direito de Lisboa, e o professor do cadeirão Marcelo Rebelo de Sousa. Ele adorava ser o primeiro a abrir “as hostilidades”, de desvirginar os alunos recém-chegados à casa com o primeiro embate de uma prova com carradas de matéria e, invariavelmente, uma rasteirita ou outra.
Não que Marcelo fosse o mau da fita naquela Faculdade, muito pelo contrário. Ele era uma espécie de “polícia bom”, o professor que dava as melhores notas. Numa faculdade onde as classificações entre 16 e 20 estavam excluídas da escala, e onde um 15 só se conseguia raras vezes e normalmente com orais de subida de nota, ele era a única generosa ave rara que afrontava a enraizada tradição. Gostava de dar boas notas e, também assim, “comprar” a popularidade que granjeava na Faculdade. Fazia questão de corrigir algumas dezenas de testes, para sentir o pulso à classe. Mas era tão mãos-largas nas notas que até os próprios assistentes subalternos consideravam tal generosidade estupidamente despropositada, e não o escondiam. “Os parabéns da casa, nas mãos do professor este teste valia-lhe prá aí um 17! Como fui eu que corrigi, dei-lhe 14, olhe o seu azar!”, disse-me o rapaz cheio de si, de óculos e a cara marcada pelo acne que o atormentou na adolescência que foi assistente na minha subturma, quando me atirou com desdém para cima da mesa o teste revisto. Em vez de me indignar com a estupidez do trato, orgulhei-me do feito conseguido: O professor Marcelo teria gostado do meu teste! Uau.
Os exames que corrigia pelo seu próprio punho, gostava depois de distribuir com espetáculo na aula teórica seguinte: com a sua impressionante memória fotográfica, calcorreava o anfiteatro atirando epítetos simpáticos e nem por isso aos alunos: “Que desastre épico!”, “Eh pá, você um marrão insuportável, olhe que assim não arranja namorada!”; “Parabéns pelo teste, foi muito bom para quem é evidente que não pegou num livro!”, “Não sei se o problema maior é a burrice ou totózice” e outras tiradas do género faziam as delícias da assistência e o embaraço mor dos visados. Outro grande momento era aquele em que distribuía livros a quem acertasse nas respostas difíceis que colocava. “O Príncipe”, de Maquiavel, era uma das suas gratificações favoritas. Olhando para trás, sempre achei a escolha perfeita: há tanto de Maquiavel em Marcelo, na astúcia, habilidade política e calculismo.
Numa casa de tradição e costumes, muito cinzentismo e mesmo algum bafio, Marcelo era um herói para os miúdos que como eu tinham acabado de cair ali de pára-quedas. Por esta altura, já levava uma grande rodagem mediática. Tinha feito parte da assembleia constituinte em 75, assumido pastas no governo de Balsemão e sido diretor do Expresso, onde protagonizou momentos históricos de crítica e afronta ao proprietário do jornal. Foi um dos rostos da oposição interna no PSD ao governo do Bloco Central e, anos mais tarde, encabeçado a candidatura do partido à Câmara de Lisboa em 1989. Apesar dos nossos 18 anos, todos nos lembrávamos do célebre mergulho gelado no Tejo, à data super-poluído, as suas aventuras ao volante de um táxi e as fotos sorridentes a varrer lixo nas ruas de Lisboa, que quase lhe valeram as eleições.
Conhecíamos-lhe os hábitos invulgares, que ele já então gostava de partilhar e ajudaram a construir uma certa aura: dormia três horas por dia, lia três livros ao mesmo tempo. Nada com Marcelo era linear, o que se refletia nas aulas. Consegui fazer um curso de Direito inteiro sem praticamente meter os pés nas aulas teóricas – adormecia, literalmente, com Ruy de Albuquerque, entediava-me com Menezes Cordeiro e apreciava a bondade e dedicação de Freitas do Amaral, embora não pudesse estar mais nas tintas para os recursos hierárquicos na administração pública –, mas nunca perdia uma aula do Professor. (A única outra exceção foi, mais tarde, António Vitorino, um comunicador e professor brilhante). Nunca tanto como nas suas aulas se apinhava o enorme Anfiteatro 1, para o ouvir falar da matéria, mas sobretudo, do que não era a matéria. Mais do que um professor, ele era um show man louco para a bitola da academia, exímio na arte da oralidade e rei da argumentação, contra-argumentação e contra-contra-argumentação.
As histórias mirabolantes de bastidores, o sarcasmo e o jogo de cintura na interpretação da lei supostamente fundamental deixavam-me pasmada. Para quem quisesse perceber, ficava logo ali bem claro que, com Marcelo, as coisas nunca são o que parecem. Podem ser diferentes outras, ter muitos tons, minudências ou variações em dó menor, merecer interpretações extensivas, criativas ou mesmo abusivas. O artigo x diz isto, certo? Sim, mas há que interpretá-lo à luz do artigo y, e esse artigo na sua essência tem por base um princípio que nalguns casos pode ser contraditório. Perante um conflito de interesses, há que ajustar a interpretação. Mais para a esquerda ou mais para a direita, há várias argumentações possíveis e algumas podem dar mais jeito do que outras. Escolhamos as que mais nos convêm. Depois de o ouvir naquele anfiteatro durante dois anos, pouco me espantou nos seguintes. Elogiar não é o mesmo que apoiar? Fumar não é o mesmo que inalar? Na cabeça de Marcelo, claro que não. É possível, de facto, dizer tudo e o seu contrário, sempre com um enorme sorriso na cara.
Embora adorado pelos alunos, e de longe o professor mais popular da Faculdade no meu tempo (1993 – 1998), na academia Marcelo nunca foi uma referência entre a doutrina em matéria de direito constitucional. Estava muito longe de Gomes Canotilho e Vital Moreira, sumidades com imensos livros de referência publicados. Na verdade, nunca se lhe viram obras marcantes nem pensamento próprio – era brilhante, isso sim, na comunicação do pensamento alheio. O que os outros estudavam e pensavam mas não conseguiam transmitir, ele dizia de forma surpreendentemente clara, límpida e interessante. Revi as minhas Constituições pacientemente anotadas à mão: entre as dezenas de referências e opiniões que me pareceram importantes porque acrescentavam à interpretação da lei, não encontrei nenhuma do professor. Sempre que me lembro de Marcelo e dos tempos da faculdade, recordo o elogio mais demolidor que alguma vez ouvi sobre alguém: “Gosto muito de o ouvir. Costumo concordar sempre com ele, sobretudo nos assuntos que não conheço bem”.