O debate na especialidade da proposta de orçamento do Estado para 2026 segue monótono, sem grandes surpresas face à reafirmada disponibilidade do PS para a viabilização na votação final global, apesar da pontual excitação do Governo sempre que alguma crítica parece pôr em causa alguma dimensão menor da pouco credível proposta.
Fora do debate orçamental, os tempos continuam sombrios, entre a confirmação da degradação do Estado de Direito, com a banalização dos “erros técnicos” sobre a demora na validação de escutas por contágio ao então primeiro-ministro António Costa, com maioria absoluta na Assembleia da República, mas demitido por um comunicado sibilino da Procuradoria-Geral da República, e, por outro lado, o incómodo trauma com a exibição do “símbolo nacional” Cristiano Ronaldo em Washington como adereço do príncipe de Riade que lhe paga os milhões de final de carreira.
As explicações sobre o inquérito a António Costa, sucessivas vezes impedido de consultar o processo ao longo de dois anos, são muito confusas, mas só surpreende é que tenha sido tão poucas vezes intercetado a falar ao telefone com os então ministros João Galamba ou Matos Fernandes, sem que o Ministério Público venha explicar quais são as superiores razões de investigação criminal, voyeurismo ou espionagem política, que justificam quatro anos de escutas telefónicas a um governante como João Galamba que nunca foi sequer ouvido pelos procuradores.
Já quanto à politica internacional, tem sido muito notado o absoluto silêncio da nossa heroica diplomacia e liderança de defesa, pelas qualificadas vozes de Paulo Rangel e Nuno Melo, sobre a relação com os ditadores bons, apesar de gostarem de mandar esquartejar jornalistas incómodos, como o da Arábia Saudita, empregador de tantos futebolistas e treinadores lusos, os ditadores maus, como o da Venezuela onde vivem centenas de milhares de portugueses e lusodescendentes ou o da Rússia, que foi execrado durante quatro anos mas que agora inspira em russo a versão americana do plano de capitulação da Ucrânia pró-europeia apresentado por Trump.
Neste cenário, e em tempo de chuva e frio, ninguém ligou a que o Governo, que se orgulha de ter uma proposta de Orçamento sem “cavaleiros orçamentais”, tenha aproveitado o debate na especialidade para apresentar pela voz do Secretário de Estado Rui Rocha as linhas gerais de um plano de destruição da evolução positiva da estratégia de combate aos incêndios rurais, desenvolvida desde 2017 e ainda esta semana elogiada pela OCDE.
O Governo só se preocupa com a proteção civil quando o assunto é mediático, como em agosto, e em agradar à chantagem corporativa da Liga de Bombeiros. Por isso, não aguarda pelos resultados da Comissão Técnica Independente, proposta pelo PS e aprovada pela Assembleia da República, nem pelo relatório da Comissão de Inquérito potestativa anunciada pelo Chega.
A equipa da OCDE, numa avaliação técnica que mereceu uma atenção praticamente nula comparativamente com as horas de diretos alarmistas durante a época de incêndios, veio dizer que é necessário aprofundar o trabalho feito desde 2017, quer de ordenamento florestal quer de prevenção de riscos, e apontou falhas graves de coordenação que contribuíram para o mau resultado do combate aos incêndios em 2024 e 2025.
O Governo desinteressou-se da prevenção, abandonou o envolvimento das populações em campanhas de limpeza das zonas florestais e de redução dos riscos de incêndio, desbaratou os recursos do PRR destinados ao ordenamento florestal e degradou o estatuto da AGIF-Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, que passou da tutela do primeiro-ministro para a da Secretaria de Estado das Florestas.
Sem dizer nada sobre o relançamento do empenho no ordenamento florestal e na prevenção dos riscos de incêndio, Montenegro e Rui Rocha só se comprometeram com a criação de um absurdo Comando Operacional dos Bombeiros, enfraquecendo a capacidade de coordenação da ANEPC, e o anacrónico regresso a um modelo de organização distrital da proteção civil, que não se articula com a estrutura da intervenção das autarquias e que desde a extinção dos Governos Civis pelo governo de Passos Coelho perdeu a estrutura de coordenação política.
O tão apressado governante Rui Rocha, que é vice-presidente do PSD, não aguardou pelas avaliações parlamentar e técnica para fazer anúncios no Congresso da Liga de Bombeiros e no debate parlamentar do Orçamento do Estado, apresentando medidas que levam à desarticulação do esforço que produziu bons resultados entre 2018 e 2023 e veio já criticar a OCDE pelo caráter prematuro da sua avaliação.
Já se percebeu, desde o discurso de Luís Montenegro no Pontal, que nesta área da proteção civil a única coisa que preocupa o Governo é a gestão política dos danos e o jogo dos pequenos interesses, jamais a cultura de prevenção ou o ordenamento florestal que não se coadunam com os calendários eleitorais.
Mas o que surpreende é a total inexistência neste debate sobre modelos estruturais, óbvias descoordenações e jogos de política de caserna partidária, da independente ministra da Administração Interna Lúcia Amaral, como se nada tivesse a ver com o tema até que a próxima crise lhe caia em cima da cabeça, pelo que leva pela sua reiterada abstenção mais um prémio Laranja sem Sumo.
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